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“Religiões afro têm papel marcante na cultura popular brasileira”

Em entrevista, o sociólogo, professor e escritor Reginaldo Prandi analisa as principais transformações das religiões afro, católica e evangélica no Brasil, tendo como pano de fundo acontecimentos históricos. Em meio a profundas diferenças, elas coincidem no esforço de se manterem atuais e em diálogo com um mundo cada vez menos religioso
Imagem do Freepik

Há mais de meio século pesquisando e estudando religião, o sociólogo, professor da USP e escritor Reginaldo Prandi tem o tempo a seu favor. Nos anos 1970, ele foi um dos pioneiros na investigação de religiões até então pouco exploradas por estudiosos como o candomblé e a umbanda, tema que norteia até hoje seu trabalho. O pesquisador também vivencia e assiste de perto inúmeras reviravoltas no panorama religioso, instigadas pelo espírito do tempo.

“Lembro-me de, quando criança, ir à igreja católica e ver as mulheres de véu e sentadas longe dos homens. Recentemente, acompanhei a guinada das religiões afro com a chegada da internet, que acelerou incrivelmente o aprendizado de seus seguidores. A corrente evangélica também se modificou bastante e passou a incentivar o que antes condenava, a ascensão econômica e social”, conta.

A produção literária de Prandi é profícua, com obras acadêmicas, romances e infanto-juvenis, e foco nas religiões de matriz africana. Em 2023, ele lançou dois livros Brasil Africano (Arché Editora) e Os príncipes do destino (Pallas Editora). Neste ano já tem um livro prestes a ser lançado, Em nome do pai, no qual dirige seu olhar à diversidade religiosa. A seguir, ele analisa as diferenças das religiões católica, evangélica e afro, lembrando que todas elas vivem em constante transformação. “De uma hora para outra, tudo pode mudar”, ressalta.

Parepense: Pensando no caldo de tradições religiosas que é o Brasil, gostaria que comentasse o avanço enorme do cristianismo evangélico e se considera que as religiões de matriz africana estão sendo eclipsadas?

Reginaldo Prandi: Nos anos 1970, quando comecei a estudar religião, o catolicismo era hegemônico, tinha mais de 90% do total de fiéis do País. Havia poucos evangélicos, com predominância dos pentecostais, e a umbanda tinha acabado de surgir. Essas duas religiões eram as principais alternativas para os católicos insatisfeitos. Hoje, o catolicismo reúne em torno de 50% dos que possuem religião no Brasil. As religiões afro-brasileiras contam com cerca de 1% dos religiosos. Ela é demograficamente reduzida e sempre foi minoritária em números absolutos.

PP: Do ponto de vista cultural e histórico, porém, as religiões afro têm um peso muito maior, não?

RP: Certamente. O candomblé deu origem à umbanda, que se propagou rapidamente. A umbanda deixou de ser uma religião estritamente étnica e identitária, ligada aos descendentes de escravizados, para se transformar em uma religião universal. Embora tenha poucos seguidores, ela é muito expressiva culturalmente. A sua riqueza é parte constitutiva da cultura popular brasileira. O samba, vários ritmos musicais, a capoeira e muito da culinária brasileira vieram do terreiro. Há também a força da mitologia da umbanda. Seu panteão é muito conhecido e associado a festas populares. Todo mundo sabe que Iemanjá é a rainha do mar. Exu e Xangô estão bem difundidos. Artistas, compositores, músicos, cantores e artistas plásticos reverenciam a religiosidade afro. Vinícius de Morais, Jorge Amado e Glauber Rocha são exemplos disso. A Tropicália está intimamente ligada às religiões afro, com Gilberto Gil, Maria Bethânia, Caetano Veloso e outros. Eles ajudaram a popularizar as mães de santo, os terreiros e todo esse universo religioso. Vemos o candomblé e a umbanda em músicas, no cinema, no teatro e em desfiles de escolas de samba.

PP: E onde reside a força da igreja evangélica?

RP: A igreja evangélica atrai muita gente porque procura dar respostas novas a demandas novas da sociedade. No neopentecostalismo, todo mundo tem direito à riqueza, conforto e bem-estar. Comprar, consumir e acumular são atos respeitados e incentivados. É a teologia da prosperidade, que nega a visão anterior a ela, protestante, em que o consumo era visto como algo negativo, e o dinheiro, coisa do diabo. A expansão do consumo no Brasil alinhou-se muito bem à expansão evangélica e vice-versa. Na cultura, entretanto, as religiões evangélicas têm pouca expressividade porque costumam transpor sua doutrina e moral para a música, o cinema, o teatro. Assim, acabam ficando restritivas. As religiões afro inspiram a arte e a cultura sem pregar crenças ou atitudes, há total liberdade criativa.

“A separação entre o que é religião e o que é secular acontece no cristianismo, com evangélicos, mas não nas religiões afro-brasileiras”

PP: Que características das religiões afro estimulam sua ampla disseminação na cultura brasileira?

RP: A dinâmica dos terreiros ajuda a explicar o bom entrosamento entre religião e cultura. Os rituais são divididos em duas atividades principais, a religiosa e a social. Primeiro, as divindades são cultuadas com comidas e bebidas. Depois, são reverenciadas com cuidados com o próprio terreiro, que representa a ideia do abrigo. O objetivo é ofertar aos orixás aquilo que damos à família, alimentação e proteção. Por fim, há a diversão, com música e dança. A festa para os orixás é um momento de convivência entre deuses e humanos. Com as oferendas, os orixás aparecem por meio das pessoas que entram em transe. Terminada essa etapa, começa o samba. É como se depois da missa católica acontecesse um baile. A separação absoluta entre o que é religião e o que é secular acontece no cristianismo, é levado muito a sério pelos evangélicos e não existe nas religiões afro-brasileiras. O samba mostra claramente essa caraterística. Ele tem todos os ingredientes da música, do terreiro e da dança das religiões afro, mas não trata de assuntos religiosos, mas sim de sentimentos mundanos.

PP: Que mudanças destacaria nas religiões católicas, evangélicas e afro nos últimos tempos?

RP: As religiões se transformam o tempo inteiro. Há 50 anos, as fiéis católicas não podiam entrar na igreja às sextas-feiras sem véu, homens e mulheres se sentavam em lados diferentes e a missa era rezada em latim. Muitas mudanças começaram entre 1964 e 1968, com o Papa João XXIII, que convocou o Concílio Vaticano II, concluído e publicado pelo Papa João Paulo VI. O catolicismo foi atualizado para ficar mais próximo do mundo real. Houve uma profunda transformação também das religiões evangélicas. Os evangélicos deviam se contentar com uma vida materialmente limitada, não podiam sonhar com filhos na faculdade, bons salários ou viagens. Afinal, todo o conhecimento e experiência deveriam ser supridos pela Bíblia e pelos pastores. Essa visão era conveniente, pois mantinha os trabalhadores conformados com arrochos salariais, sindicatos fechados e um regime político autoritário. A teologia da prosperidade mudou radicalmente esse cenário. Nas religiões afro, uma grande mudança aconteceu a partir da pandemia. Até então, elas eram obrigatoriamente presenciais, não havia rituais pela TV ou online como acontecia entre católicos e evangélicos há bastante tempo. É muito importante comer, beber e dançar com os orixás, e modificar essas práticas parecia algo impensável. O confinamento, porém, estimulou a umbanda e o candomblé a se reinventarem. Inicialmente, ambos tiveram muita dificuldade para se adaptar, por falta de recursos financeiros e de experiência. Com o tempo, aprenderam a fazer uso das lives, de novos meios de comunicação, e esse caminho se mostrou tão interessante que continua sendo largamente utilizado. 

PP: Que outros impactos as religiões de matriz africana sentiram com a transformação digital?
RP: O surgimento da internet acelerou o aprendizado do candomblé e da umbanda. Antes dela, um iniciante podia levar dez anos para dominar completamente as danças, músicas, rezas e culinária. Ele só aprendia quando ia ao terreiro, presencialmente. Com a internet, surgiram cursos, sites e aplicativos com conteúdo organizado e acessível, facilitando a aprendizagem e a ascensão à posição de liderança religiosa. Hoje vemos algo que era inédito e se tornou cada vez mais comum, que são mães de santo com doutorado e inseridas em academias de letras.

PP: Como se deu a chegada das religiões de matriz africana ao Brasil?

RP: Essa é uma história pouco documentada e que se mistura à chegada dos escravizados para trabalhar na produção do açúcar, na pecuária e na mineração, durante o período colonial. No Brasil, as pessoas escravizadas perdiam seu nome e suas crenças, e eram obrigadas a seguir o catolicismo, religião oficial e única naquela época. No entanto, era permitido que cantassem e dançassem em rituais católicos. Nesse momento, os escravizados aproveitavam para cantar e dançar para seus orixás, em língua africana. É bom lembrar que a dominação de um povo por outro não leva necessariamente à destruição da religião subjugada, pois pode acontecer um processo de assimilação. Foi assim no Império Romano, com a construção de templos politeístas. A expansão do imperialismo europeu no Novo Mundo, porém, se deu ao contrário. Sua primeira medida ao conquistar um território era aniquilar as religiões estrangeiras. Por isso, os escravizados acabaram adotando os santos católicos ao mesmo tempo em que conservavam, secretamente, o culto aos orixás.

“Temos seguido a tendência mundial, que é de esvaziamento e de fechamento de igrejas de diferentes vertentes”

PP: Como essa mescla de santos e orixás evoluiu?

RP: À certa altura, os escravizados libertos ou descendentes deles passaram a morar e trabalhar nas cidades, realizando serviços urbanos tido como menores como transporte, alfaiataria e sapataria. Com isso, surgiu uma divisão geográfica, com bairros da aristocracia e bairros de escravizados libertos, o que facilitou a formação e a reunião desses grupos em torno de religiões afro. No século XIX aconteceu uma reconstituição da velha religião africana e os orixás ganharam importância. Um orixá tem diferentes manifestações. Há os orixás meninos, orixás adultos, orixás guerreiros, orixás belos. Da mesma forma, Nossa Senhora tem várias faces. Há a Nossa Senhora das Dores, do Ó e muitas outras, cada qual com seu culto e iconografia especial. Todas essas manifestações se misturaram de várias maneiras, com pessoas cultuando santos e orixás simultaneamente, mesmo sem necessariamente seguir a umbanda.

PP: Você enxerga uma nova onda de branqueamento das religiões afro nesse momento?

RP: Não, vejo muito mais o fortalecimento de um movimento identitário em que afrodescendentes estão atuando intensamente para garantir seus direitos. Se você for a um terreiro de umbanda, encontrará bastante gente branca, o que está relacionado também à composição étnica de cada região brasileira. Um terreiro no Sul ou Sudeste provavelmente terá mais brancos. A umbanda provocou o apagamento de raízes africanas ao cantar tudo em português, ao reduzir o sacrifício animal ao mínimo possível, comprando alimentos no supermercado, e ao democratizar a estrutura hierárquica, que é mais rígida no candomblé. No candomblé, os iniciantes ficam descalços, como ficavam os escravizados. Conforme ascendem na hierarquia religiosa, podem calçar sapatos, como faziam os libertos. O sapato era um sinal de que aquele indivíduo era um homem livre na sociedade escravocrata brasileira. No entanto, assim como nas religiões evangélicas, nas afro-brasileiras há muitas correntes e cada terreiro possui sua própria história e jeito de funcionar, então qualquer generalização sobre terreiros de umbanda e de candomblé leva a imprecisões.

PP: Poderia comentar a influência do islamismo nas religiões afro-brasileiras?

RP: Os trajes e a culinária são, de fato, muito semelhantes e isso se deve à vinda de escravizados que trouxeram o islamismo para o Brasil. As roupas brancas, o chapéu, o acarajé e o falafel apresentam muitas semelhanças. Havia uma forte presença deles na Bahia, mas uma rebelião malsucedida, a Revolta dos Malês, foi abafada pelas forças policiais, com trágicas consequências. Os rebeldes foram mortos, vendidos para outros países ou exilados, o que praticamente eliminou essa corrente religiosa do País. Apesar disso, ainda hoje a influência islâmica acontece na religiões afro-brasileiras, por meio do nosso contato com a África islamizada.

PP: Olhando em retrospecto, após décadas de pesquisa e de análise da religião, o que mais te impressionou ou surpreendeu?

RP: Como sociólogo, meu objeto de estudo é a mudança, então não fico surpreso com as transformações, por mais impensáveis e improváveis que elas sejam. Nesse momento, acompanho o surgimento de mais uma possível religião afro, ligada ao oráculo Ifá. Ifá é um sistema adivinhatório bastante antigo e complexo, dedicado a interpretações do passado, do presente e do futuro. Ele teve origem na etnia iorubá, concentrando-se principalmente na Nigéria. O interesse pelo Ifá e sua releitura vem aumentando ao redor do mundo, o que pode resultar em uma nova vertente religiosa. No catolicismo, o Papa Francisco trouxe um frescor com potencial de provocar mudanças.

PP: Há uma característica tipicamente brasileira no modo como vivenciamos as práticas religiosas?

RP: Na verdade, não. Temos seguido a tendência mundial, que é de esvaziamento e de fechamento de igrejas de diferentes vertentes. Assim como na Europa, o que mais cresce no Brasil é a porcentagem de pessoas sem religião. Essa expansão acontece em um ritmo proporcionalmente mais veloz do que em qualquer outra religião no País.

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