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A terceira via

O professor Galen Watts ouviu mais de 30 mil pessoas que se dizem espiritualizadas para compreender essa crença cada vez mais comum entre os que não se identificam com uma religião nem se contentam com as respostas da ciência. Leia no artigo “O que significa ser espiritualizado?”, publicado originalmente no The Conversation
Imagem do Freepik

Artigo originalmente publicado no site The Conversation, em 16 de novembro de 2017

Repare:

  • o autor lembra que, em sua origem, a palavra espírito não era oposta à ao algo material, mas a tudo que não era Deus e à “carne”;
  • em uma pesquisa com 33 mil pessoas, o professor associou ser espiritualizado a uma forma de buscar respostas existenciais sem o peso de uma religião e para além dos limites da ciência;
  • de acordo com o estudo, a experiência espiritual é apreciada pois estimula o autoconhecimento, a compaixão, a ética e a empatia;
  • ambientalistas e a geração millenial, de forma geral, têm se identificado cada vez mais com o conceito de espiritualidade, mesmo que tenham alguma religião;
  • se continuar ascendente, essa tendência de crença e de comportamento deverá ter impactos nas futuras gerações.

A espiritualidade se tornou uma espécie de palavra da moda na cultura atual, especialmente para a geração millennial. Cada vez mais, os norte-americanos se identificam como espiritualizados em oposição a religiosos.

O que está por trás da crescente popularidade da espiritualidade sem religião? Alguns críticos sugeriram que essa mudança seria um subproduto da cultura auto-obcecada de hoje,  evidência de uma epidemia de narcisismo . Esta crítica é semelhante à lançada à geração millennial (nascida entre 1980-2000) em geral, o que alguns estudiosos têm chamado de “Geração Eu”.

“Espírito, originalmente, não era o oposto de físico ou material, mas de carne”

Embora não discorde dessas caracterizações, acredito que há mais nessa história. Desde 2015, tenho conduzido pesquisas aprofundadas com a geração millennial canadense, entrevistando 33 millennials canadenses que se identificam como espiritualizados, mas não religiosos — a fim de compreender melhor suas crenças e práticas.

Acredito que quando as pessoas se autodenominam espiritualizadas estão,  basicamente, sinalizando três coisas. Primeiro, que acreditam que há mais no mundo do que as aparências, ou seja, mais do que o mero material. Em segundo lugar, que tentam prestar atenção à sua vida interior – aos seus estados mentais e emocionais – na esperança de adquirir um certo tipo de autoconhecimento. Terceiro, que valorizam as seguintes virtudes: ser compassivo, empático e de coração aberto.

Perguntas sobre significado e valor no mundo

As origens da palavra “espiritualidade”, no contexto da teologia cristã, residem no substantivo latino spiritualitas, que derivou do substantivo grego pneuma, que significa espírito. Curiosamente, “espírito”, originalmente, não era o oposto de “físico” ou “material”, mas de “carne” ou de tudo que não é de Deus. Portanto, uma “pessoa espiritual”, no sentido cristão original, era simplesmente uma pessoa dentro da qual habitava o Espírito de Deus.

O significado original de espiritual contrastava-o com “carne” – ou “tudo que não é de Deus”. Hoje é entendido como aquilo que não podemos perceber.

Apesar disso, entre os millennials que entrevistei, a “espiritualidade” é geralmente contrastada à “materialidade”. Portanto, aponta para aquilo que necessitamos para viver, mas que não podemos perceber ou medir.

A religião, muitos pensam convencionalmente, atende ao campo da experiência humana que diz respeito às nossas questões mais fundamentais – questões de significado, propósito e valor. Mas desde o Iluminismo, muitos indivíduos nos países do Atlântico Norte desenvolveram uma auto-compreensão de si próprios como seculares ou modernos.

Para muitos, a religião não parece uma opção viável. Ela soa desatualizada ou em desacordo com a compreensão científica do mundo (ou, pelo menos, partes dele). No entanto, apesar desta mudança, permanecem questões de significado, propósito e valor.

Além disso, para muitos dos participantes do meu estudo, a ciência é incapaz de responder adequadamente a algumas das questões mais cruciais da vida: o que é a beleza? Como devo me relacionar com o mundo natural? A quem (ou ao o quê) devo entregar minha vida? Por que ser justo? O que é justiça?

Embora a ciência possa fornecer respostas a estas perguntas, elas raramente inspiraram os participantes do estudo como eles gostariam. E para muitos, as respostas da ciência simplesmente não são suficientes para ajudá-los a viver suas vidas.

Assim, quando as pessoas falam de espiritualidade, geralmente invocam alguma estrutura de significado que lhes permite dar sentido àquilo que, para elas, a ciência não consegue abordar.

“Os ambientalistas têm frequentemente apoiado a espiritualidade”

É por isso que ateus, agnósticos e crentes podem – e muitas vezes todos eles o fazem – identificar-se como espiritualizados. Não é preciso acreditar em Deus para ter questões que o materialismo científico não pode responder.

A cultura ocidental também está focada no sucesso material

O segundo aspecto da espiritualidade envolve um movimento interior, ou uma atenção à vida interior, muitas vezes como forma de honrar as dimensões imateriais da vida. A maioria dos participantes do meu estudo pensa que a cultura ocidental contemporânea está demasiadamente focada no exterior, glorificando o sucesso material e as aquisições em detrimento das coisas que realmente importam.

Eles concordariam com o famoso crítico cultural Erich Fromm que, na década de 1970, argumentou que as sociedades modernas enfatizam ter coisas em vez de apenas ser. A espiritualidade sublinha a importância de nos sintonizarmos com a nossa vida interior — tanto como forma de resistir à pressão constante que a nossa cultura exerce para valorizar o que está fora de nós quanto para encontrar um lugar de refúgio.

Esta é uma das razões pelas quais, por exemplo, os ambientalistas têm frequentemente apoiado a espiritualidade. Eles argumentam que uma das principais causas das alterações climáticas e da destruição ambiental é a busca incessante pelo crescimento econômico, alimentada por uma lógica capitalista de aquisição e expansão.

O Dalai Lama certa vez brincou que, enquanto o Ocidente estava ocupado explorando o espaço exterior, o Oriente estava ocupado explorando o espaço interior. Independentemente da veracidade desta generalização, ele estava resumindo uma percepção detectada pelo meu estudo. Os participantes sentem que as sociedades contemporâneas do mundo ocidental estão estruturadas de tal forma que o silêncio e a quietude são a exceção e não a regra.

Quando os millennials dizem que procuram tornar-se mais espiritualizados estão,  muitas vezes, dizendo que tentam resistir a esta tendência.

Olhando para dentro para agir com mais sabedoria

Para muitos millennials, olhar para dentro é um esforço ético. Ser espiritual, para eles, implica buscar compreender melhor a própria vida interior para agir com mais sabedoria no mundo. Para muitos, tornar-se mais contemplativo ou consciente da sua vida interior permite interagir com os outros de uma forma menos reativa, menos prejudicial e mais autêntica.

“O caminho para dentro, na sua melhor forma, não está enraizado no narcisismo, mas sim apoiado em uma ética robusta”

Assim, certas virtudes passaram a ser associadas à espiritualidade: compaixão, empatia e coração aberto. Essas virtudes fluem naturalmente da introspecção inerente à espiritualidade porque, em última análise, exigem um alto nível de autoconhecimento. Isto é, o conhecimento dos motivos pelos quais mantemos certas crenças, ações e, o mais importante, nossas interações.

Este conhecimento – adquirido através de práticas como meditação, autorreflexão e (em alguns casos) psicoterapia – leva a pessoa a tornar-se mais sensível às emoções dos outros e até mesmo aos ambientes circundantes, tanto sociais como naturais.

Assim, o caminho para dentro, na sua melhor forma, não está enraizado no narcisismo, mas sim apoiado em uma ética robusta – uma vontade de enfrentar os próprios demônios, a fim de compreender melhor a condição humana.

Para alguns, esse caminho interior trata, em última análise, da autotransformação ou da transcendência de condicionamentos da primeira infância e da conquista de um certo tipo de autodomínio. Para outros, implica sintonizar-se com as dimensões imateriais da vida.

A estrutura que esbocei não esgota toda a gama de significados que o termo espiritualidade invoca. Nem estou sugerindo que todos os indivíduos que se enquadram na descrição acima sejam necessariamente espirituais. Pretendo apenas propor que estas três características abrangem muito do que os millennials querem dizer quando se autodenominam espirituais.

O que descrevi não deve levar os leitores a pensar que todos os millennials que se autodenominam espirituais vivem estes ideais éticos. A nossa capacidade de concretizar os nossos ideais éticos depende não só da nossa própria vontade, mas também das restrições sociais e económicas em que vivemos.

Assim, minha pesquisa atual busca compreender melhor a espiritualidade vivida, ou seja, como a espiritualidade opera na vida cotidiana das pessoas. Em última análise, mais pesquisas precisam ser feitas para compreender melhor essa tendência emergente.

À medida que o número de pessoas que se identificam como “espiritualizadas” continua a aumentar, é provável que a espiritualidade venha a moldar as sociedades norte-americanas de formas importantes e duradouras.

Galen Watts

Professor-assistente de Sociologia e Estudos Jurídicos na Universidade de Waterloo, em Ontário (Canadá)

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