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“A religião me oprimiu, mas também me deu um norte”

Da igreja evangélica à umbanda, a pedagoga e estudante de psicologia Nay Reis viu na religião, ainda criança, uma fonte de segurança, ordem e atenção. Não sem dor e decepções, conseguiu se libertar do peso de dogmas inatingíveis e preservou sua fé, hoje uma vivência saudável e de conexão com a natureza
Imagem do Freepik

Repare:

– o depoimento apresenta um percurso religioso diversificado, longo e marcado pela busca de conhecimento e de figuras que trouxessem salvação;

– a vivência religiosa oferece à pedagoga Nay Reis um porto seguro, proporcionando-lhe o necessário equilíbrio psicológico para enfrentar os desafios da infância e da adolescência, ingressar na faculdade e ter uma profissão;

– a imposição de normas e aspirações religiosas irreais, entretanto, vão criando uma tensão insuportável entre o ideal de perfeição e a experiência humana de ser falível e imprevisível;

– as notáveis contradições entre as crenças religiosas e as práticas das lideranças e de seguidores, acabam por desconstruir as metas de ser uma devota perfeita e de encontrar uma salvação;

– a partir dos sentimentos de decepção e de hipocrisia com as diferentes religiões experimentadas, Nay direciona sua fé e espiritualidade para uma escolha mais realista e afinada com sua visão de mundo.

“Experimentei algumas religiões ao longo da vida, a espiritualidade sempre foi algo muito importante para mim. Hoje sigo a umbanda e meu primeiro contato com um terreiro aconteceu por volta dos 8 anos, quando morava com a minha tia materna. Ela frequentava um terreiro e me levava junto porque não tinha com quem me deixar. No início eu assistia as giras e achava um pouco estranho, sentia  medo. Depois me acostumei e até pedi para ser filha de santo, o que não ocorreu porque mudei de cidade, para morar com a minha mãe, e parei de frequentar terreiro por um longo período.

Alguns anos depois passei a acompanhar minha tia paterna na igreja Messiânica Mundial do Brasil. A única coisa que me incomodava nela era o não reconhecimento de Jesus Cristo como salvador. Sentia-me ofendida ouvindo que ele era um homem como outro qualquer. Hoje, repensando, vejo que a ideia era ajudar cada ser humano a perceber a própria divindade. A mensagem principal era sobre se sentir parte de uma energia maior, que é Deus.

Pouco tempo depois fui estudar em um colégio confessional da Igreja Adventista, em regime de internato. Lá acabei por me desconectar da religião messiânica, pois não havia condições de praticá-la.

O internato foi uma verdadeira lavagem cerebral. Havia muita religião e pouca espiritualidade. Durante a semana, eram três cultos por dia; pela manhã, à tarde e à noite. No final de semana, o número de cultos aumentava. De segunda a sexta, dois cultos eram obrigatórios para os internos e havia rituais também em sala de aula. A primeira aula começava com uma leitura da Bíblia, seguida de uma oração, que eles chamavam de meditação, mas não tinha nada a ver com meditar. Era uma vivência religiosa diária e massacrante.

“Sempre busquei alívio na espiritualidade e religião. Desde criança pensava em Deus como alguém que iria me salvar”

Nessa época, a Bíblia já era um livro importante para mim, era a palavra de Deus, como todo evangélico acredita. Observei que a pregação na Adventista era mais esclarecedora e bem apoiada na Bíblia. Como eu confiava na Bíblia, achei isso fantástico. Estudávamos muito, líamos versículos inteiros e os pastores contextualizavam historicamente o que líamos. A igreja Adventista se preocupava em preparar teoricamente seus pastores. Eles estudavam grego, hebraico e liam a Bíblia em idiomas originais. Assim, conseguiam entender melhor as lições bíblicas, que são difíceis, e podiam transmiti-las com mais fundamentos. Era bem diferente de ler um trecho pequeno e fazer uma interpretação ao sabor dos ventos, o que via muito em outras igrejas. Como consequência dessa vivência religiosa intensiva, acabei por me batizar aos 16 anos.

Sempre busquei alívio para as minhas dores na espiritualidade e na religião. Desde criança pensava em Deus como alguém que iria me salvar. Com a igreja Adventista, a crença em um Jesus Cristo salvador ficou ainda maior — e opressora. Os evangélicos dizem muito que Jesus Cristo salva, cura e liberta. Abracei totalmente essa ideia. No entanto, o tempo me mostrou que as pregações passavam mensagens inatingíveis como viver em santidade e se afastar de todos os pecados. As próprias lideranças da igreja não davam conta disso. Eram pessoas normais, pecavam o tempo todo.

Fiquei na igreja Adventista boa parte da minha adolescência e início da vida adulta. Apesar de dolorosa, essa experiência foi essencial para eu me equilibrar, entrar na faculdade e seguir um bom caminho. Sinto que muita coisa poderia ter dado errado se não tivesse passado por essa vivência religiosa. A igreja era um lugar que me organizava, dava um norte, de alguma forma era um porto seguro.

Por outro lado, sentia muita cobrança para ser perfeita. Era um peso enorme. E acabei achando esse ideal de perfeição uma hipocrisia, pois aos poucos fui conhecendo pessoas da igreja que deveriam ser bons exemplos e não eram. Nesse momento, iniciei uma reflexão sobre a minha busca espiritual. Comecei a sentir um incômodo. Percebi que estava tentando alcançar algo impossível, eram preceitos incompatíveis com a realidade.

Esse entendimento da opressão da igreja foi o começo de uma grande mudança interna. De repente, me vi com um ranço enorme da religião protestante. Com o tempo, isso passou. Consigo ver que a igreja Adventista enriqueceu meu aprendizado, mas demorou para eu superar tudo o que vi de perto.

Já adulta fui conhecer o candomblé. Foi uma experiência curta. Estava lecionando em um curso técnico e descobri que uma das alunas era dessa religião. Fiquei curiosa e fui visitar uma casa. O candomblé despertou minha curiosidade de vários modos. Achava os rituais interessantes, gostava das roupas, me sentia atraída por esse universo, e passei a frequentá-lo.

“Não há lugar mais suscetível ao pecado do que os espaços religiosos e as lideranças são os que mais caem em tentação”

Até que um dia fui convidada para ser Ekedi, como são chamadas as mulheres que não entram em transe, não recebem orixás, mas assumem um cargo logo abaixo ao de mãe de santo. Eu seria devidamente preparada para ter a responsabilidade de cuidar das coisas dos orixás principais da casa.

Fui me desencantando do candomblé por diversas razões, entre elas a prática da rígida hierarquia desse terreiro em particular. Não gostei, achava tudo isso uma mera disputa de egos. Naquela época, não sabia que cada casa seria de um jeito, então presumi que o candomblé como um todo não era para mim. Abandonei-o rapidamente. Mais para frente, descobri que cada casa de candomblé funciona de um jeito.

A essa altura já tinha noção de que não havia uma religião pura e totalmente correta. Na verdade, não há lugar mais suscetível ao pecado do que os espaços religiosos e as lideranças são os que mais caem em tentação. A exigência de evoluírem espiritualmente, de serem superiores, acaba por colocá-los sob muita pressão e olhares de admiração. Eles atraem paixões e outras situações porque estão em destaque, entram em contato com muita gente e muitas oportunidades. Acredito que o fardo de ser infalível e inspirar as pessoas acaba sendo ‘compensado’ com a quebra de regras da própria religião que os líderes pregam.

Cheguei a passar um tempo sem religião, cuidando da espiritualidade por minha conta, meditando e estudando sozinha. A prática espiritual é indispensável para mim, me ajuda a me equilibrar. A religião, por outro lado, é interessante quando há um líder que realmente tenha mais experiência e conhecimento, que seja capaz de ensinar algo com propriedade.

Não entendo mais a religião como um bote salva-vidas, mas como uma sabedoria que posso aprender para viver melhor. Hoje pratico a umbanda, tenho a minha líder espiritual, Mãe Susana de Oyá, e estou muito feliz com essa escolha. Como disse o teólogo Leonardo Boff,  “A umbanda é uma religião profundamente ecológica. Devolve ao ser humano o sentido da reverência face às energias cósmicas.”  É através dessa relação íntima e constante com os elementos da natureza que aprendemos a utilizá-los para melhorar nossas vidas.

Esse aprendizado requer um líder. É um processo bonito, valioso, que me faz bem. No terreiro que frequento há muito respeito pelas pessoas e por outras religiões. A humildade e a tolerância são valores centrais. Não me sinto oprimida. É um lugar que me traz paz e liberdade de ser quem eu sou. E ao mesmo tempo, sou incentivada a evoluir constantemente em direção à minha melhor versão.”

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