Repare:
- herança do período colonial, a religiosidade faz parte do dia a dia do brasileiro, mesmo entre aqueles que não seguem uma religião ou seguem várias ou se dizem apenas espiritualizados;
- a autora destaca que a crença em um poder maior responde a uma demanda psíquica por proteção, destinada a aliviar o desamparo que sentimos enquanto espécie e individualmente;
- Freud aproxima Deus da figura paterna, apontando a complexidade da vivência religiosa. Ela apazigua, mas também amedronta os fiéis, tal qual um pai;
- a psicanalista lembra, ainda, que as manifestações religiosas expressam a cultura de um povo, contribuindo para a reflexão da identidade nacional;
- manter o olhar crítico mas não destrutivo sobre a fé, evitando os extremos a respeito do tema, seria uma postura saudável para pensar e viver a religião e a espiritualidade.
Que atire a primeira lorota quem não tem em casa ou em mente vivências, pensamentos ou símbolos religiosos. Seja um terço herdado da avó, uma imagem de Iemanjá, um japamala, um livro de Kardec ou um sonoro aleluia na ponta da língua, o jeito de ser brasileiro é permeado pela religiosidade, em maior ou menor intensidade e intenção. E não se trata apenas de uma constatação empírica frente a fartas evidências cotidianas, mas de dados.
De acordo com a pesquisa Global Religion 2023, realizada pelo instituto Ipsos, 89% dos brasileiros afirmam acreditar em Deus. O resultado situa o Brasil na primeira posição do ranking dos países que mais depositam fé em um poder divino. Essa crença indica que somos os campeões mundiais em crer em algo “maior”, “superior”, mesmo sem seguir uma religião ou, ainda, seguindo várias simultaneamente.
Recordar dos primórdios da Igreja Católica em solo nacional ajuda a elucidar nossa aposta no invisível. O catolicismo por aqui chegou e ficou não como uma opção ou chamado, e sim como uma questão de vida ou morte. Professar a fé cristã e converter-se a ela no período colonial era garantia de não ser punido, torturado ou assassinado. Parte do extermínio de indígenas e de negros escravizados aconteceu assim, em nome de Deus.
Como ressalta Luiz Rufino, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a violenta intervenção militar e religiosa da coroa portuguesa está na raiz da formação da nação brasileira e de nossas manifestações religiosas. A influência desses dois eventos se faz sentir até hoje, conferindo “naturalidade” ao ato de crer em algo superior, principalmente dentro de uma visão euro-cristã. A lógica do pecado e da salvação intermediados por uma autoridade nos é muito familiar – foi cruelmente imposta e repetida por séculos.
Além disso, em um país habituado a leis e instituições tão erráticas, que funcionam melhor ou pior conforme a cor da pele, a etnia, o gênero e a classe social, Gilberto Gil nos lembra da vantagem de andar com fé: ela não costuma falhar. Onde faltam escolas, hospitais, parques, ruas asfaltadas, luz elétrica e água, sobram igrejas, templos, centros e terreiros. A religiosidade tende a ser mais disseminada em países com maior desigualdade social.
Segundo o Censo 2022, lançado recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui mais estabelecimentos religiosos do que o total de instituições de ensino e de saúde. Esses espaços se instalam em pequenos cômodos domésticos, ao ar livre ou em imponentes construções. Se diferem nos ritos e mitos, coincidem na oferta de alento. Materializam a ideia de presença, de esperança, de segurança e de outras medidas essenciais para a sobrevivência física e psíquica.
“A vida como ela é, com toda a sua brutalidade, caos e finitude, torna-se insuportável sem a perspectiva de transcendência simbólica”
Antes de menosprezarmos a busca por um conforto espiritual, como se ele fosse um recurso inferior ou primitivo em comparação com um plano de ação racional, a psicanálise faz um alerta. Uma dose de abstração, ilusão ou sublimação da realidade – não importa tanto o nome, mas a função desse movimento psíquico – é vital para manter-se são. A arte e a religião cumprem essa missão, entre tantas outras.
A vida como ela é, com toda a sua brutalidade, caos e finitude, torna-se insuportável sem a perspectiva de transcendência simbólica. A expectativa de reencarnação, de paz eterna e de integração com a natureza após a morte são exemplos de imagens de alento e de recompensa às agruras da vida. Elas são construídas para clarear minimamente o enigma de existir e torná-lo mais palatável.
A religiosidade e a espiritualidade seguem caminhos próprios, como explica o professor de sociologia Galen Watts. Ele vem estudando desde 2015 o crescimento contínuo do grupo que se encaixa na segunda definição. Sua pesquisa reúne entrevistas com mais de 30 mil pessoas que se dizem espiritualizadas. A espiritualidade, para os entrevistados, é entendida como um meio de cultivar o autoconhecimento e, com isso, valores como ética, compaixão e empatia. A insatisfação com as respostas religiosas e científicas a questões existenciais está na base dessa escolha.
O filósofo Robert C. Solomon fez do esforço de diferenciar religião de práticas espirituais um livro, o Espiritualidade para céticos. Nessa obra, ele observa que, enquanto as correntes religiosas tendem a ser restritivas e abstratas, a espiritualidade está no mundo de forma ampla e cotidiana. Ela “pode ser encontrada em nossas paixões mais nobres, em particular no amor”1. A natureza, o casamento, a família e as amizades são, assim, espaços para a experiência espiritual, que envolve atributos como o encantamento, a contemplação e a sabedoria.
“A sensação de desamparo é uma experiência que começa na infância e nos acompanha a vida inteira”
O fato é que, havendo ou não uma religião em cena, a necessidade de desejarmos ou mantermos um vínculo com uma entidade percebida como superior, perfeita e imortal é atávica e atende a um anseio de proteção. Tão bem mapeada pela psicanálise, a sensação de desamparo nos acompanha desde os tempos das cavernas, quando a fúria ou a bonança da natureza indomável selava o destino da humanidade.
O desamparo é também uma experiência individual, singular e traumática. Iniciado na infância, ele nos assombra pelo resto dos dias, com mais ou menos sintomas e saídas criativas, sendo a religiosa uma delas. A queda advém da descoberta, ainda crianças, de que não somos mais o centro da atenção dos pais e do universo como chegamos a ser quando bebês.
Como bônus da conclusão de não sermos especiais e muito menos únicos, vem o pior. A consciência de que somos frágeis, comuns, falíveis, mortais. E, em vários momentos, excluídos da vida de nossos pais (e depois de amantes, amigos, colegas, chefes), que amam, odeiam, sofrem e se divertem à nossa revelia.
Inserir-se na comunidade humana é o remédio para aumentar os ganhos e reduzir os danos de viver sob a própria pele. Os laços sociais vêm ao preço de nos submetermos a leis e normas pré-existentes. Não as fizemos ou escolhemos, mas teremos que respeitá-las. Ensinar a “submissão” à cultura é tarefa árdua da família, que transmite ao rebento um modo de viver e conviver sob certas regras.
Cada casa tem seus métodos, inclusive os religiosos, mas em todas será necessário (ou esperado) que os pequenos abandonem seus instintos mais destrutivos e primitivos como o desejo de matar alguém ou de se casar com os genitores. Deste modo, ingressamos no pacto da civilização. A conquista é “eu não mato, mas também não morro” ou “eu sou tolhido aqui, mas poderei escolher acolá”.
“Freud vê na religião, nos deuses, uma fonte de ilusão, amparo e medo, tal qual a figura paterna”
Proibições, frustrações e privações, e as contrapartidas obtidas a partir disso, fazem parte do amadurecimento do indivíduo. A vivência religiosa, especificamente a figura dos deuses, tem participação especial nesse processo. Diz Freud sobre o papel da religião2:
“Com o passar do tempo, foram feitas as primeiras observações sobre a regularidade dos fenômenos naturais e sua conformidade a leis… Mas permanece o desamparo do ser humano, e, com isso, o anseio pelo pai, e os deuses. Esses conservam sua tripla tarefa: afastar os terrores da natureza, conciliar os homens com a crueldade do destino, tal como ela se evidencia na morte, sobretudo, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que lhes são impostos pela vida civilizada que partilham.”
Ao lado da compreensão de que a religião possui a estratégica função de amparar, Freud a iguala à ilusão e a aproxima da neurose obsessiva. O caráter ilusório assenta-se no fato de que o religioso acredita em algo que deseja acreditar, à revelia da realidade. Algo parecido com a dinâmica da neurose obsessiva, que envolve a repetição mandatória de pensamentos e de atos irracionais, embora, de alguma maneira, essa ritualização faça sentido para a história de cada um.
O entendimento da religião como um aparato ambivalente, que ajuda e atrapalha, remete mais uma vez à figura paterna. Na concepção freudiana, o pai protege e ameaça. Ele é mais forte do que a mãe e tem o poder de interromper a linha direta que havia entre a figura materna e a prole, na formação de casal com ela.
Essa tensão entre vantagens e desvantagens é percebida por religiosos. Com uma longa trajetória em diferentes crenças, a pedagoga Nay Reis vê a religião como um vetor de ajuste social em sua vida, apesar do sentimento de opressão e de decepção que ela trouxe em diversos momentos. Percalços de sua infância e adolescência foram superados com a estabilidade emocional encontrada em igrejas, templos e terreiros.
Lacan concordaria de imediato com essa aplicação da fé. Conta Vladimir Safatle sobre a visão do psicanalista francês a respeito da religiosidade3:
“…Lacan recomendará, como estratégia profilática contra a psicose, a recondução desses pacientes a instituições sociais rígidas ou a grandes ideais reformadores que exigem abnegação. Por sinal, essa será sua estratégia quando tiver em análise Dora Maar (artista e amante de Picasso) nos anos 1940. Sentindo a fragilidade de sua estrutura psicótica, Lacan verá como saída clínica o reforço de seu encaminhamento em direção à fé religiosa”.
Se como força paterna a religião pode adoecer ou curar, como expressão cultural do país ela é um poderoso espelho da identidade de um povo: revela o melhor e o pior. É o que acontece com as religiões de matriz africana, como pontua o sociólogo e professor da USP Reginaldo Prandi.
Mesmo demograficamente irrelevantes, o candomblé e a umbanda são referências cruciais para a música, a culinária e a arte brasileiras. Ambos resgatam e renovam a força da africanidade, levando dos terreiros para as ruas o samba, o acarajé, Iemanjá e outros inúmeros ícones da cultura popular brasileira. Apesar dessa contribuição tão rica e presente, são alvos constantes de intolerância e violência.
A ponte entre religião e cultura inexiste na igreja evangélica e é proporcionalmente pouco expressiva na católica, se pensarmos na sua hegemonia. Nas práticas religiosas dos povos indígenas, por sua vez, há a forte conexão entre o sagrado e a ecologia, com reverência à natureza que protege e é protegida pelos seus.
As características e as possibilidades tão distintas das religiões apontam para a complexidade desse território. Definir essa experiência apenas como ilusão ou salvação não basta. A escolha mais saudável provavelmente é a mais difícil: apropriar-se da religiosidade ou espiritualidade a partir das próprias crenças, em vez de ser apropriada por ela. A subversão, e não a submissão, pode nos salvar.
Referências bibliográficas
1- SOLOMON, Robert C. – “Espiritualidade para céticos”, Civilização Brasileira, 2003 – p. 25
2- FREUD, Sigmund – “Inibição, sintoma e angústia, O Futuro de uma ilusão, (1926-1929), Obras Completas – volume 17” – Companhia das Letras, 2014 – p.250
3- SAFATLE, Vladimir – “Introdução a Jacques Lacan”, Autêntica, 2018 – p.26
Respostas de 2
Excelente!!
Parabéns a todos da ParePense!!👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
Obrigado! Em breve lançaremos a próxima edição.