Search
Close this search box.
A espiritualidade alinhada à natureza está presente em manifestações religiosas de matriz africana e indígenas, integrando o divino a saberes ancestrais e ecologia. No livro “Pedrinhas Miudinhas - Ensaios sobre Ruas, Aldeias e Terreiros”, Luiz Antonio Simas mergulha nesse tema. Confira no capítulo A morada do rei dos índios

A Mórula Editorial é parceira da revista Parepense e gentilmente autorizou a publicação de um capítulo do livro Pedrinhas Miudinhas – Ensaios sobre Ruas, Aldeias e Terreiros (2019), de Luiz Antonio Simas, que pode ser adquirido em seu site

Repare:

  • o autor se situa como alguém que vive a religiosidade sem ser fiel a uma crença específica, já que sua busca é pelo conforto e pela sabedoria propiciados por diferentes religiões;
  • no capítulo a seguir, Simas resgata memórias familiares para explicar a distinção entre encantados e eguns, figuras reverenciadas pela umbanda e com narrativas indígenas ligadas à natureza;
  • a conexão sagrada com rios, montanhas, árvores e outros elementos naturais apresentam uma ótica poética, mágica e ecológica da vivência religiosa;
  • o ensaio enfatiza a importância do saber ancestral na religião, já que ele permite que as novas gerações reverenciem sua história, profundamente ligada à natureza.

Capítulo “A morada do rei dos índios”, do livro Pedrinhas Miudinhas – Ensaios sobre Ruas, Aldeias e Terreiros”, de Luiz Antonio Simas (Mórula Editorial), 2019

Os mais velhos do terreiro de xambá e encantaria de minha avó, onde cresci, me ensinaram a respeitar árvores floridas, rios largos, pedras miúdas, remansos e ventanias. Há que se considerar a possibilidade da borda do vento ser a morada de algum encantado. Rio é orixá, vento é inquice, maré é vodum, pedra de riacho é encantamento de bugre. Assim aprendi — e não me importa a crença, que tenho pouca — mas me vale o rito, que conforta e desvela o mundo na reinvenção da vida e me permite louvar a ancestralidade.

Existem os encantados e os eguns. Eu convivi, conversei, tomei esporro, fui confortado e aprendi com gente das duas naturezas. Tento alumiar a diferença.

Minha avó, por exemplo, trabalhava com o caboclo Peri, um índio que teve vida terrena, morreu e se transformou numa poderosa entidade, baixando na cabeça dos seus filhos e filhas para dar consultas, sempre esbanjando sabedoria. Dos cantos desse caboclo, meu predileto é o belíssimo ponto de partida, entoado na hora em que Seu Peri deixa a guma para voltar ao invisível:

Adeus Seu Peri, adeus

A sua banda lhe chama

Ele já vai oló

(Ele já vai oló)

Sua macaia, macaiana

Como fica só…

Seu Peri não pode ser considerado um encantado, já que sofreu a morte física. O encantado é aquele que não conheceu a experiência da morte, transformando-se, em vida, num vento, numa rocha, numa praia, numa árvore, numa folha, nas areias do fundo do mar, dos desertos e das serras. Encantou-se ou ajuremou-se, como alguns antigos preferem dizer.

Minha mãe carnal trabalhava com Japetequara (ou Jabetequara, segundo alguns), um exemplo de encantado. Reza a tradição que Japetequara, conhecido também como rei dos índios, foi um turco que chegou ao Brasil no século XVII e encantou-se numa árvore de sucupira, castanho-escura, pesada e resistente, da floresta amazônica. Quando vem na guma, dança curvado, como um velho honorável, e é recebido por alguns cantos fabulosos. O meu predileto é o seguinte:

Ainda flora a sucupira

Ainda flora o guerreiro

Ainda flora a sucupira

Caboclo velho é flecheiro

Ê caboclo velho

Das barras do Ariri

Lagoa grande secou

Todos morreram

Eu não morri!

Enquanto o canto de seu Peri fala em ‘ir oló’, termo muito ligado ao conceito de morte física, o canto de Japetequara afirma que ele não morreu, passou a viver ajuremado — encantado — nos folíolos coriáceos e nas flores em panículas do tronco da sucupira velha; vez por outra ele aparece para desfilar sua fidalguia entre o povo da terra.

É por isso que não conheço coisa mais bonita que os mistérios do encanto.  Enquanto o mundo se consome em um desvario produtivista que enxerga o grande rio — um Orixá! — como um potencial gerador de energia para grandes empreendimentos e restringe a isso o seu papel, eu, com um olhar insistente de menino que cresceu na guma, digo que a coisa estaria muito melhor se todos vissem a natureza com o respeito do povo do tambor.

Como podem derrubar a sucupira amazônica onde vive, ajuremado no encanto, o mestre turco, rei dos índios e caboclo do Brasil, o velho Japetequara, que eu vi dançar pelo corpo de minha mãe? É ele, o índio velho encantador de mundos, que brada quando floresce e abranda de suavidades a dureza do tronco escuro.

Luiz Antonio Simas

Escritor, professor, historiador, compositor brasileiro e babalaô no culto de Ifá

Este espaço é dedicado a apresentar as instituições acadêmicas e empresas que apoiam a ParePense.

Ao apoiar a ParePense, nossos parceiros contribuem para dar visibilidade aos autores dos textos e para disseminar ideias e informações importantes sobre os desafios do mundo contemporâneo.

Para saber mais, entre em Contato.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Conteúdo Relacionado

Com ou sem religião, a fé em algo ou alguém considerado superior à nossa humanidade expressa o anseio por uma figura paterna capaz de nos proteger da brutalidade que é viver e morrer. Leia mais no artigo da psicanalista e jornalista Gabriela Garcia
Em entrevista, o sociólogo, professor e escritor Reginaldo Prandi analisa as principais transformações das religiões afro, católica e evangélica no Brasil, tendo como pano de fundo acontecimentos históricos. Em meio a profundas diferenças, elas coincidem no esforço de se manterem atuais e em diálogo com um mundo cada vez menos religioso
Luiz Rufino, escritor, pedagogo e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), explica como saberes e valores ancestrais se traduzem em uma filosofia do cotidiano que alimenta a luta de grupos subalternizados e abre a possibilidade de um convívio mais responsável com o planeta
Da igreja evangélica à umbanda, a pedagoga e estudante de psicologia Nay Reis viu na religião, ainda criança, uma fonte de segurança, ordem e atenção. Não sem dor e decepções, conseguiu se libertar do peso de dogmas inatingíveis e preservou sua fé, hoje uma vivência saudável e de conexão com a natureza

Inscreva-se na nossa newsletter

Atualizações sobre tudo o que há de novo na Parepense.