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Por uma ciência com mais húmus e menos humanos

Para a filósofa Donna Haraway, a continuidade das espécies exige uma compreensão do mundo imaginativa, sensível e responsável, que transcenda os pontos cegos da razão. Leia mais em trechos do livro "Ficar com o problema: Fazer parentes no chthluceno", selecionados pelo editor convidado Peter Pál Pelbart
Imagem de Leandro Silva

A n-1 edições é parceira da revista Parepense e gentilmente autorizou a publicação de trechos do livro Ficar com o problema: Fazer parentes no chthluceno, de Donna Haraway, que pode ser adquirido em seu site

Repare:

  • a autora parte da premissa de que as ciências, quando guiadas pelo antropocentrismo, não dão conta de refletir sobre a realidade multiespécie em que vivemos;
  • ela propõe que, no lugar de antropoceno, adotemos chthluceno, termo derivado do grego que significa “vindo da terra” e também nomeia uma espécie de aranha e um monstro tentacular;
  • seu pensamento e escrita são transdisciplinares, apoiando-se em diferentes saberes e referências estéticas, da ficção científica à arte, passando pela filosofia e literatura;
  • Haraway subverte a supremacia da lógica racional e da linguagem machista e branca com neologismos que nos convocam a uma compreensão de mundo mais sensível, imaginativa e complexa;
  • a antropóloga Anna Tsing e sua saga com cogumelos raros são bastante citadas nos trechos a seguir e ilustram o tipo de ética científica e ecológica pregada por Haraway.

Excerto 1 – Páginas 57 e 58 – Ficar com o problema: Fazer parentes no chthluceno,  de Donna Haraway – n-1 edições

O que acontece quando o excepcionalismo humano e o individualismo delimitado, essas velhas máximas da filosofia ocidental e da economia política, se tornam impensáveis nas melhores ciências, sejam naturais ou sociais? Seriamente impensáveis: indisponíveis para se pensar com. As ciências biológicas têm sido especialmente potentes em fermentar noções a respeito de todos os habitantes mortais da Terra desde o imperialista século xviii. O Homo sapiens – o Humano como espécie, o Antropos como espécie humana, o Homem Moderno – foi o principal produto dessas práticas de conhecimento. Mas o que acontece quando as melhores biologias do século xxi já não podem mais fazer seu trabalho com a soma de indivíduos delimitados e contextos?

Ou quando a soma de organismos e ambientes, ou de genes e qualquer coisa de que necessitem, já não pode sustentar a riqueza que transborda dos conhecimentos biológicos – se é que o fez algum dia? O que acontece quando a soma de organismos e ambientes já não pode ser lembrada, pelas mesmas razões que fazem com que até mesmo os herdeiros do Ocidente já não possam se ver como indivíduos e sociedades de indivíduos em histórias apenas humanas?

Sem dúvida, uma época tão transformadora na Terra não deveria ser chamada de Antropoceno! Neste capítulo, junto com toda a prole infiel dos deuses celestes e com meus companheiros de ninhada, que se comprazem em chafurdar em imbróglios multiespécies, quero fazer um alvoroço crítico e alegre sobre esse assunto. Quero ficar com o problema, e a única maneira que conheço para fazê-lo é com alegria, terror e pensamento coletivo gerativos.

Excerto 2 – Página 61 a 64 –  Ficar com o problema: Fazer parentes no chthluceno,  de Donna Haraway – n-1 edições

Todos esses seres tentaculares e fibrosos me deixaram descontente com o pós-humanismo, embora eu me nutra de muitos trabalhos gerativos realizados sob esse signo. Meu companheiro Rusten Hogness sugeriu composto em vez de pós-humano (e pós-humanismo), e ainda humusidades em vez de humanidades, e eu me joguei nesta pilha bichada. O humano como húmus tem potencial, se pudermos picar e desfiar o humano como Homo, esse projeto detumescente de um chefe executivo auto-produtor e destruidor de planetas. Imagine um colóquio que não seja sobre o Futuro das Humanidades na Reestruturação Capitalista da Universidade, mas sobre o Poder das Humusidades por um Imbróglio Multiespécie Habitável! As artistas ecossexuais Beth Stephens e Annie Sprinkle fizeram um adesivo de para-choque para mim, para nós, para sf: “Compostar é tão quente!”

A Terra do Chthuluceno em curso é simpoiética, não autopoiética. Mundos Mortais (Terra, Gaia, Chthulu e os incontáveis nomes e poderes que não são nada gregos, latinos ou indo-europeus) não fazem a si próprios, não importa quão complexos e multiníveis sejam os sistemas, não importa quanta ordem seja produzida a partir da desordem, em colapsos e reativações autopoiéticas e gerativas dos sistemas em níveis de ordem mais altos. Os sistemas autopoiéticos são extremamente interessantes, vide a história da cibernética e das ciências da informação; mas eles não são bons modelos para os mundos vivos e moribundos e para os bichos que os povoam. Os sistemas autopoiéticos não são fechados, esféricos, deterministas nem teleológicos; ainda assim, eles não são modelos suficientemente bons para o mundo mortal de sf. A poiesis é sinctônica, simpoiética, sempre associada em todo o percurso, sem uma “unidade” inicial nem unidades interativas subsequentes. O Chthuluceno não se fecha em si mesmo, não se remata; suas zonas de contato são ubíquas e prolongam continuamente suas gavinhas espiraladas. A aranha é uma figura muito melhor para a simpoiese do que um vertebrado com patas inadequadas de um panteão qualquer. A tentacularidade é sinctônica, enrolada em tramas, sofreguidões e esgarçamentos terríveis e abissais, fazendo transmissões uma e outra vez, em recursividades gerativas que constituem formas de viver e morrer.

Excerto 3 – Página 68 a 71 – Ficar com o problema: Fazer parentes no chthluceno,  de Donna Haraway – n-1 edições

Instruída por Valerie Hartouni, recorro à análise de Hannah Arendt sobre a incapacidade de pensar de Adolf Eichmann, criminoso de guerra nazista. Naquela renúncia ao pensamento está assente a “banalidade do mal”, do tipo particular que poderia tornar realidade o desastre do Antropoceno, com seus genocídios e especídios intensificados. O resultado ainda está em jogo; é imprescindível que pensemos, devemos pensar! Na leitura de Hartouni, Arendt insistia que o pensamento era profundamente diferente daquilo que poderíamos chamar de saber disciplinar, de ciência baseada em evidências ou da classificação entre verdade e crença, fato e opinião, bom e mau.

Pensar, no sentido de Arendt, não é um processo para avaliar informações e argumentos, para se estar certo ou errado, para julgar a si mesmo e a outros sobre ter ou não a razão. Tudo isso é importante, mas não é o que Arendt tinha a dizer sobre o mal da insensibilidade, que é o que quero trazer para a discussão a respeito da conjuntura geo-histórica que vem sendo chamada de Antropoceno.

“O mundo não importa para a insensibilidade comum. Os espaços esvaziados são todos preenchidos com a avaliação de informações…”

Arendt percebeu que Eichmann não era um monstro incompreensível, mas algo muito mais aterrorizante: ela viu o lugar comum da insensibilidade. Ali estava um ser humano incapaz de tornar presente para si aquilo que estava ausente – aquilo que não era ele mesmo, aquilo que o mundo é em seu absoluto não-ensimesmamento, o que se diz inerente àquilo que não se é. Ali estava alguém que não podia ser um caminhante, que não podia se entrelaçar, que não podia rastrear as linhas de viver e morrer, que não podia cultivar a respons-habilidade, que não podia tornar presente para si mesmo aquilo que estava fazendo, que não podia viver em consequência nem com as consequências, que não podia compostar. A função importava, o dever importava, mas o mundo não importava para Eichmann. O mundo não importa para a insensibilidade comum. Os espaços esvaziados são todos preenchidos com a avaliação de informações, a determinação de amigos e inimigos, os ocupados afazeres do trabalho. A negatividade, o escavamento da positividade, está ausente: há um assombroso abandono do pensar. Essa qualidade não se resumia a um vazio emocional nem a uma falta de compaixão – ainda que isso certamente fosse verdade para Eichmann –, mas a uma renúncia muito mais profunda que eu chamaria de imaterialidade, de inconsequencialidade ou, no léxico de Arendt (e também no meu), de insensibilidade. Eichmann foi astralizado diretamente para fora do imbróglio do pensamento na prática do business as usual, não importa o quê. Não havia maneira de o mundo se tornar uma “questão de cuidado” para Eichmann e seus herdeiros – nós? O resultado foi a participação ativa no genocídio.

Anna Tsing – antropóloga, feminista, teórica cultural, contadora de estórias e conhecedora dos tecidos do capitalismo heterogêneo, da globalização, de mundos viajantes e lugares locais – estuda as “artes de viver em um planeta degradado”, ou, como no subtítulo de seu livro, “a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo”. Tsing performa um tipo de pensamento que deve ser cultivado nas urgências demasiado comuns da onda de extinções, genocídios, pauperização e extermínios multiespécies. Chamo essas coisas de urgências, e não de emergências, porque essa palavra conota algo que se aproxima do apocalipse e suas mitologias. As urgências têm outras temporalidades, e esses são os nossos tempos. Esses são os tempos que devem ser pensados; esses são os tempos de urgências que precisam de estórias.

Tsing pratica a simpoiese em tempos inquietantes ao seguir os cogumelos matsutake por seus agenciamentos fulminantes de pessoas japonesas, estadunidenses, chinesas, coreanas, hmong, laosianas e mexicanas; esporos e fungos; carvalhos e pinheiros; simbioses micorrízicas; coletores, compradores, transportadores, restauradores e comensais; homens de negócio; cientistas, florestadores, sequenciadores de DNA com suas espécies mutantes e muito mais. Recusando-se a desviar o olhar ou a reduzir as urgências da Terra a um sistema abstrato de causalidades destruidoras (como uma Lei da Espécie Humana ou o capitalismo indiferenciado), Tsing argumenta que a precariedade – isto é, o fracasso das promessas mentirosas do Progresso Moderno – caracteriza a vida e a morte de todos os bichos terranos nestes tempos. Ela busca por erupções inesperadas de vivacidade e por práticas contínuas, contaminadas, não determinísticas e inacabadas de habitar as ruínas. Ela performa a força das estórias, ela mostra na carne que importa quais estórias contam estórias como uma prática de cuidado e de pensamento: Se uma profusão de estórias conturbadas é a melhor maneira de contar sobre a diversidade contaminada, então é hora de tornar essa profusão parte de nossas práticas de conhecimento. […]. A disposição do matsutake para emergir em paisagens devastadas nos permite perscrutar a ruína que se tornou nosso lar coletivo. […] Estudá-los nos ensina sobre as possibilidades de coexistência em ambientes perturbados. Não se trata de uma desculpa para causar mais estragos. O que o matsutake nos mostra é um tipo de sobrevivência colaborativa.

Movida por uma curiosidade radical, Tsing faz uma etnografia da “acumulação selvagem” e do “capitalismo fragmentário”, do tipo que já não pode prometer o progresso, mas que ainda pode estender a devastação – e de fato a estende, fazendo da precariedade a regra de nossa sistematicidade. Não há nenhum ponto ético, político ou teórico simples a ser tomado do trabalho de Tsing. Há, por outro lado, a força de engajar o mundo com os tipos de prática de pensamento que são impossíveis para os herdeiros de Eichmann. “Os matsutake nos contam sobre a sobrevivência colaborativa em meio ao distúrbio e à contaminação. Precisamos dessa habilidade para viver nas ruínas.” Isto não é um anseio por salvação nem por outro tipo de política otimista; tampouco se trata de um quietismo cínico diante da profundidade do problema. Ao contrário, Tsing propõe um compromisso para se viver e morrer com respons-habilidade em companhia inesperada. Esses tipos de vida e de morte têm as melhores chances de cultivar as condições necessárias para a continuidade.

“Despida de universalismos masculinistas e suas políticas de inclusão, a guman de Terrápolis é cheia de gêneros e categoria”

Excerto 4 – Página 28 – Ficar com o problema: Fazer parentes no chthluceno,  de Donna Haraway – n-1 edições

Terrápolis

Essa palavra vira-lata, compostada da micorriza de radículas gregas e latinas e seus simbiontes, demarca o fim, de uma vez por todas, da cosmopolítica globalizadora kantiana e da mundificação rabugenta do excepcionalismo humano heideggeriano. Terrápolis nunca foi pobre de mundos – ela existe na rede FS de conexões sempre excessivas, … e não no hiato existencialista, solitário, sem vínculos e produtor-do Homem teorizado por Heidegger e seus seguidores. Terrápolis é rica em mundanidade: inoculada contra o pós-humanismo, mas rica em composto: inoculada contra o excepcionalismo humano, mas rica em húmus; madura o bastante para a narração de estórias multiespécie. Terrápolis não é o mundo natal do ser humano como Homo – aquela autoimagem fálica do mesmo, sempre parabólica, re- e de-tumescente –, mas do ser humano que, por um truque de língua de etimologia indo-europeia, metamorfoseia-se em guman, trabalhadora do/no solo. Meus bichos sf são mais seres da lama do que do céu, mas as estrelas também brilham em Terrápolis. Despida de universalismos masculinistas e suas políticas de inclusão, a guman de Terrápolis é cheia de gêneros e categorias, cheia de tipos-em-feitura, cheia de alteridades significativas. Amigas e colegas que pesquisam linguística e civilizações antigas me contam que guman é adama/adão, compostada de todos os gêneros e de todas as categorias disponíveis, competente o bastante para criar um mundo que se torne um lar para ficar com o problema. Terrápolis tem relações sf produtoras de parentesco e de figuras de barbante que constituem o tipo de cosmopolítica carnuda proposta por Isabelle Stengers, ou ainda as práticas de mundificação de escritoras sf.”

Donna Haraway

Filósofa, zoóloga e professora emérita no Departamento de História da Consciência e no Departamento de Estudos Feministas na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz (EUA)

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