parepense_logo_white
Search
Close this search box.
Search
Close this search box.

Mais antigas e sábias do que nós

No livro "A vida das plantas - Uma metafísica das misturas", o filósofo Emanuele Coccia critica o pedestal que diversas disciplinas destinaram ao conhecimento humano e destaca a sabedoria do reino vegetal. Veja no trecho selecionado pelo editor convidado Peter Pál Pelbart
Imagem de Leandro Silva

A editora Cultura e Barbárie é parceira da revista Parepense e gentilmente autorizou a publicação de um trecho do livro A vida das plantas – Uma metafísica das misturas, de Emanuele Coccia, que pode ser adquirido em seu site

Repare:

  • o autor aponta que, ao longo da história, a filosofia concentrou sua produção em questões consideradas humanas, em detrimento do conhecimento relativo aos animais e vegetais;
  • ao erguerem fronteiras entre os temas da natureza e os da natureza humana, muitos filósofos passaram a ter uma concepção parcial, ignorando e relação intrínseca entre eles;
  • as ciências naturais também são alvo de crítica do autor, por colocarem a natureza em oposição à humanidade, como se ela fosse apenas objeto e não sujeito do conhecimento;
  • mesmo a física contemporânea teria uma abordagem míope, pois as tecnologias que utiliza, como satélites, não conseguem captar plenamente a complexidade do que investigam;
  • a proposta do autor é que a vida seja compreendida a partir da perspectiva do reino vegetal, o observador mais próximo e primevo do mundo.

Excerto – Página 23 a 26 – A vida das plantas – Uma metafísica das misturas, de Emanuele Coccia, Cultura e Barbárie

Hoje é muito natural para alguém que se pretende filósofo conhecer os mais insignificantes acontecimentos do passado de sua nação enquanto ignora os nomes, a vida ou a história das espécies animais e vegetais de que se alimenta cotidianamente. Mas, além desse analfabetismo por desuso, a recusa de reconhecer qualquer dignidade filosófica à natureza e ao cosmos produz um estranho bovarismo: a filosofia busca a todo custo ser humana e humanista, ser incluída entre as ciências humanas e sociais, ser uma ciência — mais ainda, uma ciência normal — como todas as outras. Misturando falsos pressupostos, veleidades superficiais e um moralismo repugnante, os filósofos se transformaram em adeptos radicais do credo protagórico: “O homem é a medida de todas as coisas.” Privada de seus objetos supremos, ameaçada por outras formas de saber (pouco importa que se trate das ciências sociais ou das ciências naturais), a filosofia se transformou numa espécie de Dom Quixote dos conhecimentos contemporâneos, engajada numa luta imaginária contra projeções do seu espírito; ou num Narciso fechado nos espectros do seu passado, transformados em suvenires vazios de museu provinciano. Forçada a não tratar do mundo, mas das imagens mais ou menos arbitrárias dele que os homens produziram no passado, ela se tornou uma forma de ceticismo, amiúde moralizado e reformista.

As consequências vão mais longe. Foram principalmente as ciências ditas “naturais” que sofreram com esse exílio. Reduzindo a natureza unicamente ao que é anterior ao espírito (que, assim, é qualificado de humano) e que não participa de maneira alguma de suas propriedades, essas disciplinas se obrigaram a transformá-la num objeto puramente residual, oposicional, para sempre incapaz de ocupar a posição de sujeito. Natureza seria o espaço vazio e incoerente de tudo o que precede a emergência do espírito e se segue ao big bang, a noite sem luz e sem verbo que impediria qualquer cintilação e qualquer projeção.

“O mundo é antes de tudo o que as plantas souberam fazer dele. Foram elas que fizeram nosso mundo…”

Esse impasse é o resultado de um recalcamento obstinado: o do vivente, e do fato de que todo conhecimento é já uma expressão do ser da vida. Nunca podemos interrogar e compreender o mundo de modo imediato, pois o mundo é o sopro dos viventes. Todo conhecimento cósmico é um ponto de vida (e não apenas um ponto de vista), toda verdade é o mundo no espaço de mediação do vivente. Nunca se poderá conhecer o mundo enquanto tal sem passar pela mediação de um vivente. Ao contrário, encontrá-lo, conhecê-lo, enunciá-lo significa sempre viver de acordo com certa forma, a partir de certo estilo. Para conhecer o mundo é preciso escolher em que grau da vida, em que altura e a partir de que forma se quer olhá-lo e, portanto, vivê-lo. Precisamos de um mediador, um olhar capaz de ver e viver o mundo lá onde não conseguimos chegar. A física contemporânea não escapa dessa evidência: seus mediadores são as máquinas que ela erigiu em posição de sujeitos suplementares e protéticos para imediatamente ocultá-los, recusando reconhecê-los como a projeção dos olhos da física, capazes, portanto, de observar o mundo tão somente de uma única perspectiva. Os microscópios, os telescópios, os satélites, os aceleradores de partículas são olhos inanimados e materiais que lhe permitem observar o mundo, ter um olhar sobre ele. Mas as máquinas de que a física faz uso são mediadores que sofrem de uma presbitia, estão sempre atrasadas e afastadas demais das profundezas do cosmos: não veem a vida que as habita, o oIho cósmico que elas próprias encarnam. A filosofia, aliás, sempre escolheu mediadores míopes, capazes apenas de se concentrar unicamente sobre a porção de mundo imediatamente limítrofe. Perguntar ao homem o que significa estar-no-mundo — como fez Heidegger e toda a filosofia do século XX — significa reproduzir uma imagem extremamente parcial do cosmos. Tampouco basta (como nos ensinou Uexküll) deslocar o olhar para as formas mais elementares da vida animal: o carrapato, o cachorro e a águia têm já abaixo deles uma infinidade de outros observadores do mundo. As plantas são os verdadeiros mediadores: são os primeiros olhos que se colocaram e abriram para o mundo, são o olhar que consegue percebê-lo em todas as suas formas. O mundo é antes de tudo o que as plantas souberam fazer dele. Foram elas que fizeram nosso mundo, ainda que o estatuto desse fazer seja bem diferente do de qualquer outra atividade dos viventes. E, pois, às plantas que este livro vai colocar a questão da natureza do mundo, da sua extensão e da sua consistência. Assim também, a tentativa de refundar uma cosmologia — a única forma de filosofia que pode ser considerada como legítima — deverá começar por uma exploração da vida vegetal. Postularemos que o mundo tem a consistência de uma atmosfera, e que são as folhas que podem atestar isso. Pediremos às raízes para explicar a verdadeira natureza da Terra. Finalmente, é a flor que nos ensinará o que é a racionalidade, definida não mais como capacidade ou potência universal, mas como força cósmica.

Emanuele Coccia

Filósofo, escritor e professor titular de filosofia na Ehess (École des Hautes Études en Sciences Sociales), de Paris

Este espaço é dedicado a apresentar as instituições acadêmicas e empresas que apoiam a ParePense.

Ao apoiar a ParePense, nossos parceiros contribuem para dar visibilidade aos autores dos textos e para disseminar ideias e informações importantes sobre os desafios do mundo contemporâneo.

Para saber mais, entre em Contato.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Conteúdo Relacionado

Artigo do filósofo e professor Peter Pál Pelbart analisa crise de imagem da espécie humana, que vê a própria sobrevivência ameaçada pelo ideal de progresso que concebeu e executou ao longo da História
Em vez de um distanciamento do passado, a psicóloga e filósofa Vinciane Despret propõe uma intensa e longa relação entre os vivos e os que partiram. Saiba mais em trechos de seu livro "Um brinde aos mortos – Histórias daqueles que ficam", selecionados pelo editor convidado Peter Pál Pelbart
A antropóloga Anna Tsing faz da busca pelos cogumelos uma inspiração para refletir sobre a precariedade do capitalismo e as perspectivas de uma nova coexistência entre os seres vivos. Confira fragmentos do livro "O cogumelo no fim do mundo", selecionados pelo editor convidado Peter Pál Pelbart
Para a filósofa Donna Haraway, a continuidade das espécies exige uma compreensão do mundo imaginativa, sensível e responsável, que transcenda os pontos cegos da razão. Leia mais em trechos do livro "Ficar com o problema: Fazer parentes no chthluceno", selecionados pelo editor convidado Peter Pál Pelbart

Inscreva-se na nossa newsletter

Atualizações sobre tudo o que há de novo na Parepense.