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A antropóloga Anna Tsing faz da busca pelos cogumelos uma inspiração para refletir sobre a precariedade do capitalismo e as perspectivas de uma nova coexistência entre os seres vivos. Confira fragmentos do livro "O cogumelo no fim do mundo", selecionados pelo editor convidado Peter Pál Pelbart
Imagem da Freepik
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A n-1 edições é parceira da revista Parepense e gentilmente autorizou a publicação de trechos do livro O cogumelo no fim do mundo — Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo, de Anna Tsing, que pode ser adquirido em seu site

Repare:

  • para a autora, as histórias sobre o homem e a natureza contadas a partir de uma visão civilizatória prejudicaram o entendimento e a valorização de seres não-humanos, conduzindo-nos à destruição;
  • nesse livro, ela apresenta estórias de sua busca de matsutake pelo mundo, cogumelos raros que se destacam pela imprevisibilidade bem como pela beleza e perfume;
  • as descobertas dessa jornada antropológica-sensorial são a base para uma reflexão ecológica sobre as condições de vida instáveis e precárias no planeta;
  • a autora nos convida a formular um novo modo de vida interespécies, na qual homens e natureza possam conviver melhor, apesar do capitalismo.

Excerto 1 – Página 29 a 31 – O cogumelo no fim do mundo — Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo, de Anna Tsing

Desde o Iluminismo, os filósofos ocidentais têm nos mostrado uma Natureza grandiosa e universal, mas também passiva e mecânica. A Natureza era pano de fundo e recurso para a intencionalidade moral do Homem, que podia domá-la e dominá-la. Ficou a cargo dos fabuladores, incluindo contadores de estórias não ocidentais e não civilizadores, lembrar-nos das vidas pulsantes de todos os seres – humanos e não humanos.

Muitas coisas aconteceram para minar essa divisão de trabalho. Primeiro, toda a domesticação e busca de domínio da Natureza causaram tamanha confusão que não está claro se a vida na Terra poderá continuar. Segundo, os entrelaçamentos interespécies, que antes pareciam ser assunto das fábulas, são agora matéria para debates sérios entre biólogos e ecólogos, que nos mostram como a vida requer a interação entre muitos tipos de seres. Os humanos não podem sobreviver tripudiando sobre todos os outros seres. Terceiro, mulheres e homens de todo o mundo reivindicam o mesmo status que uma vez foi dado unicamente ao Homem. Nossa presença desestabiliza a intencionalidade moral da masculinidade cristã, que separou o Homem da Natureza.

Chegou a hora de fazer valer novas formas de contar estórias verídicas, que vão além dos primeiros princípios civilizatórios. Sem o Homem e a Natureza, todas as criaturas podem voltar à vida, e homens e mulheres podem se expressar sem as restrições de uma racionalidade concebida de modo paroquial. Não mais relegadas a sussurros durante a noite, tais estórias podem ser simultaneamente verdadeiras e fabulosas. De que outra forma poderíamos explicar o fato de que ainda existe vida nessa bagunça que fizemos?

Ao perseguir um cogumelo, este livro oferece tais estórias verdadeiras. Na contramão da maioria dos livros acadêmicos, o que se apresenta aqui é uma profusão de capítulos curtos. Eu queria que eles fossem como torrentes de cogumelos que surgem depois da chuva: uma recompensa desmesurada; uma tentação a se explorar; sempre em demasia. Os capítulos constroem uma assembleia aberta, não uma máquina lógica, e acenam para o muito mais que há lá fora. Eles se entrelaçam e interrompem um ao outro – imitando a multiplicidade do mundo que tento descrever. Somando outra narrativa, as fotografias contam uma história rente ao texto, mas não o ilustram diretamente. Mais do que representar as cenas que discuto, eu uso as imagens para apresentar o espírito do meu argumento.

Imagine que “primeira natureza” significa as relações ecológicas (incluindo seres humanos) e “segunda natureza” se refere às transformações capitalistas do ambiente. Esse uso – que não é o mesmo em versões mais populares – deriva da Nature’s Metropolis, de William Cronon.[1] Meu livro, por sua vez, oferece uma “terceira natureza”, isto é, aquilo que consegue viver apesar do capitalismo. Para apenas perceber a terceira natureza, devemos evitar suposições de que o futuro é essa direção única à frente. Como as partículas virtuais em um campo quântico, múltiplos futuros entram e saem do campo das possibilidades; a terceira natureza surge dentro de tal polifonia temporal. No entanto, as estórias de progresso nos deixaram cegos. Para conhecermos o mundo sem elas, este livro esboça assembleias abertas de formas de vida emaranhadas, à medida que estas se aglutinam coordenadamente a partir de diversos ritmos temporais. Meu experimento com a forma e meu argumento se seguem mutuamente.

O livro é baseado no trabalho de campo que realizei durante as temporadas de matsutake entre 2004 e 2011 nos Estados Unidos, no Japão, no Canadá, na China e na Finlândia – bem como em entrevistas com cientistas, silvicultores e comerciantes de matsutake nesses lugares e também na Dinamarca, na Suécia e na Turquia. Talvez minha trajetória de pesquisa do matsutake ainda não tenha terminado: os matsutake acenam de lugares tão distantes quanto o Marrocos, a Coreia e o Butão. Minha esperança é que os leitores experimentem comigo um pouco dessa “febre dos cogumelos” nos próximos capítulos.

Abaixo do solo da floresta, corpos fúngicos se estendem em redes e meadas, ligando raízes e solos minerais muito antes de produzirem cogumelos. Livros surgem de colaborações igualmente ocultas. Uma lista de pessoas seria inadequada e, portanto, começo mencionando os engajamentos colaborativos que tornaram este livro possível. Diferente da etnografia mais recente, a pesquisa na qual este livro se baseia foi desenvolvida por meio de experimentos colaborativos. Além disso, as questões que me pareciam valer a pena investigar surgiram a partir de nós atados em intensas discussões nas quais fui apenas uma entre muitos participantes.

“A economia não é mais uma fonte de crescimento ou otimismo; qualquer emprego pode desaparecer com a próxima crise…”

Excerto 2 – Página 39 a 44 – O cogumelo no fim do mundo — Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo, de Anna Tsing

O que você faz quando seu mundo começa a ruir? Eu saio para caminhar e, se tiver muita sorte, encontro cogumelos. Cogumelos me trazem de volta aos meus sentidos, não apenas por suas cores e cheiros exuberantes – como as flores – mas porque surgem inesperadamente, lembrando-me da sorte de estar ali. Então me dou conta de que ainda há prazeres em meio aos horrores da indeterminação.

Horrores existem, é claro, e não apenas para mim. O clima do mundo está descontrolado e o progresso industrial provou ser muito mais letal para a vida na Terra do que poderíamos ter imaginado há um século. A economia não é mais uma fonte de crescimento ou otimismo; qualquer emprego pode desaparecer com a próxima crise econômica. E não se trata apenas de temer uma onda de novos desastres: eu me vejo sem o amparo de estórias que indiquem para onde estamos indo e por quê. Houve um tempo em que a precariedade parecia ser o destino dos menos afortunados. Agora parece que todas as nossas vidas são precárias – mesmo que, por ora, tenhamos dinheiro nos nossos bolsos. Em contraste com os meados do século xx, quando poetas e filósofos do norte global se sentiam aprisionados pelo excesso de estabilidade, muitos de nós – de norte a sul – enfrentam agora uma condição de problemas sem fim.

Este livro conta sobre as minhas jornadas com cogumelos para pesquisar a indeterminação e as condições de precariedade, isto é, a vida sem a promessa de estabilidade. Li que, quando a União Soviética entrou em colapso, em 1991, milhares de siberianos, repentinamente privados de garantias estatais, correram para a floresta para coletar cogumelos.[2] Esses não são os cogumelos sobre os quais pesquiso, mas podem ser usados para ilustrar meu ponto de vista: as vidas incontroláveis dos cogumelos são uma dádiva – e um guia – quando o mundo que imaginávamos ter controlado fracassa.

Ainda que eu não possa lhe oferecer cogumelos, espero que você me acompanhe para apreciar o “aroma do outono” celebrado no poema que abre o prólogo. Este é o cheiro do matsutake, um grupo de cogumelos selvagens e aromáticos muito valorizados no Japão. O matsutake é amado como um prenúncio do outono. O cheiro evoca a tristeza da perda da abundância fácil do verão, mas também a intensidade aguda e a sensibilidade acentuada do outono. Tais sensibilidades serão imprescindíveis no final do verão abundante do progresso global: o aroma do outono me remete àquela vida comum que não oferece garantias. Este livro não é uma crítica dos sonhos de modernização e progresso que ofereceram uma visão de estabilidade no século xx; muitos analistas antes de mim já dissecaram esses sonhos. Em vez disso, abordo o desafio imaginativo de viver sem tais amparos que já nos fizeram pensar que sabíamos, coletivamente, para onde estávamos indo. Se nos abrirmos para suas atrações fúngicas, o matsutake pode nos catapultar para um estado de curiosidade que me parece ser o primeiro requisito para a sobrevivência colaborativa em tempos de precariedade.

Eis como um panfleto radical colocou o desafio: “O espectro que muitos tentam ignorar é uma realidade muito simples – o mundo não será ‘salvo’ […]. Se não acreditamos em um futuro revolucionário global, devemos viver no presente (como sempre foi o caso).”[3]

Dizem que quando Hiroshima foi destruída por uma bomba atômica, em 1945, o primeiro ser vivo a emergir na paisagem devastada foi um cogumelo matsutake.[4]

“…quais as chances de deixarmos um ambiente habitável para os nossos descendentes multiespécies?”

Compreender o átomo foi o auge do sonho humano de controle da natureza. Foi também o começo da ruína desse sonho. O bombardeio em Hiroshima mudou tudo. De repente, nos demos conta de que os seres humanos poderiam destruir a habitabilidade do planeta – intencionalmente ou não. Essa consciência só aumentou à medida que aprendemos sobre poluição, extinção em massa e mudança climática. Metade da precariedade no mundo hoje é provocada pelos ciclos naturais da própria Terra: que tipos de perturbações humanas podemos suportar? Para além do discurso da sustentabilidade, quais as chances de deixarmos um ambiente habitável para os nossos descendentes multiespécies?

A bomba de Hiroshima também abriu as portas para a outra metade da precariedade contemporânea: as surpreendentes contradições do desenvolvimento do pós-guerra. Depois da guerra, as promessas de modernização, respaldadas pelas bombas estadunidenses, pareciam promissoras. Todo mundo deveria se beneficiar. A direção do futuro era conhecida por todos; mas e agora? Por um lado, nenhum lugar no mundo está livre da economia política global construída a partir do aparato de desenvolvimento do pós-guerra. Por outro, mesmo que as promessas de desenvolvimento persistam, parece que perdemos os meios. A modernização deveria encher o mundo – tanto o comunista quanto o capitalista – de empregos; e não apenas de qualquer emprego, mas o “emprego padrão” com salários e benefícios estáveis. Hoje, essas condições de trabalho são bastante raras; a maioria das pessoas depende de meios de vida muito mais irregulares. A ironia de nossos tempos, então, é que todos dependem do capitalismo, mas quase ninguém tem o que costumávamos chamar de “emprego formal”. 

 Viver com a precariedade requer mais do que revoltar-se contra quem nos colocou nessa situação (embora essa atitude também possa ser útil e eu não me oponha a ela). Podemos olhar à nossa volta para notar esse estranho mundo novo e expandir nossa imaginação para compreender seus contornos. É aqui que os cogumelos podem nos ajudar. A disposição do matsutake para emergir em paisagens devastadas nos permite perscrutar a ruína que se tornou o nosso lar coletivo.

Os matsutake são cogumelos selvagens que vivem em florestas onde há perturbação humana. Como ratos, guaxinins e baratas, eles estão dispostos a tolerar alguns dos distúrbios ambientais produzidos por humanos. No entanto, os matsutake não são pragas; são iguarias gourmet valiosas – pelo menos no Japão, onde os preços altos às vezes tornam o matsutake o cogumelo mais caro do planeta. Por meio de sua capacidade de nutrir as árvores, os matsutake ajudam as florestas a crescer em lugares inóspitos. Estudá-los nos ensina sobre as possibilidades de coexistência em ambientes perturbados. Não se trata de uma desculpa para causar mais estragos. O que o matsutake nos mostra é um tipo de sobrevivência colaborativa.

O matsutake também ilumina as rachaduras na economia política global. Nos últimos trinta anos, esses cogumelos tornaram-se uma mercadoria global, coletada em florestas do hemisfério norte e enviada fresca para o Japão. Muitos coletores de matsutake fazem parte de minorias culturais desterradas e privadas de direitos civis. No Noroeste Pacífico dos Estados Unidos, por exemplo, a maioria dos coletores comerciais de matsutake são refugiados do Laos e do Camboja. Por causa dos altos preços, o matsutake contribui significativamente para a sobrevivência dos catadores onde quer que seja colhido, e estimula até mesmo revitalizações culturais.

“…apenas o reconhecimento da precariedade atual como uma condição planetária nos permite perceber a situação do nosso mundo”

O comércio de matsutake, no entanto, dificilmente conduz aos sonhos desenvolvimentistas do século xx. A maioria dos coletores de cogumelos com quem conversei tem histórias terríveis para contar sobre desterro e perda. A coleta comercial é uma forma de sustento melhor do que a habitual para aqueles que não têm outra maneira de ganhar a vida. Mas que tipo de economia é essa, afinal? Os coletores de cogumelos são autônomos; nenhuma empresa os contrata. Não há salário nem benefícios; os catadores simplesmente vendem os matsutake que encontram. Há anos em que os cogumelos não aparecem e os catadores arcam com suas despesas. A colheita comercial é um exemplo de meio de vida precário, sem segurança.

Este livro se dedica à estória dos modos de vida e ambientes precários a partir do rastreamento do comércio e da ecologia do matsutake. Em cada caso, eu me vejo cercada por manchas[5] na paisagem, isto é, imersa em um mosaico de assembleias abertas de modos de vida entrelaçados, que se expandem em outros mosaicos de ritmos temporais e arcos espaciais. Meu argumento é que apenas o reconhecimento da precariedade atual como uma condição planetária nos permite perceber a situação do nosso mundo. Enquanto a análise oficial continuar a demandar pressupostos de crescimento, os especialistas não enxergarão a heterogeneidade de espaço e tempo mesmo onde ela é óbvia para participantes e observadores comuns. No entanto, as teorias da heterogeneidade ainda estão em sua infância. Para examinar as imprevisibilidades diversas associadas à nossa condição atual, precisamos reativar a imaginação. O objetivo deste livro é, na companhia dos cogumelos, estimular esse processo.


Notas da autora e referências bibliográficas:

[1] William Cronon, Nature’s Metropolis. Nova York: W. W. Norton, 1992.

[2] Sveta Yamin-Pasternak, How the devils went deaf: Ethnomycology, cuisine, and perception of landscape in the Russian far north. Fairbanks: Universidade do Alaska, 2007. Tese de doutorado.

[3] Desert, Stac an Armin Press, 2011, pp. 6, 78.

[4] Os comerciantes chineses de matsutake me contaram esta estória, que eu considerava ser uma lenda urbana; no entanto, um cientista treinado no Japão confirmou que ela apareceu nos jornais japoneses dos anos 1990. Ainda não a encontrei. Mesmo assim, o momento da bomba em agosto teria correspondido ao início da estação de frutificação de matsutake. Quão radioativos esses cogumelos eram continua sendo um mistério. Um cientista japonês me disse que planejava pesquisar a radioatividade dos matsutake de Hiroshima, mas as autoridades disseram-lhe para ficar longe deste tópico. A bomba dos Estados Unidos explodiu mais de quinhentos metros acima da cidade; a versão oficial diz que a radioatividade foi dispersada pelos sistemas de vento globais, resultando em pouca contaminação local.

[5] Termo da ecologia da paisagem. No original, patches. Ver prefácio dos tradutores. [n.t.]

Anna Tsing

Antropóloga, professora da Universidade da Califórnia de Santa Cruz (EUA) e membro da American Anthropological Association, da American Ethnological Society e da Association for Asian Studies

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