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Obras literárias repelidas por serem difíceis ou decepcionantes alimentam a curiosidade por outros títulos, ampliando o repertório dos leitores. No livro “A biblioteca no fim do túnel”, de Rodrigo Casarin, o jornalista descreve essa dinâmica labiríntica. Confira no capítulo “A maravilha que é ser um leitor fracassado”
Imagem do Freepik

A Arquipélago Editorial é parceira da revista Parepense e gentilmente autorizou a publicação de um capítulo do livro A biblioteca no fim do túnel, de Rodrigo Casarin, que pode ser adquirido em seu site

Repare:

  • o autor elenca obstáculos que nos afastam de livros consagrados como o número de páginas, o texto difícil ou a decepção com a qualidade da narrativa no decorrer da leitura;
  • esses desafios, porém, não atrapalham o hábito da leitura. Na verdade, ajudam o leitor a buscar novas opções de títulos, autores e gêneros, enriquecendo a própria bagagem literária;
  • uma vez imerso na literatura, o leitor se torna assíduo apesar dos inúmeros livros que não termina ou sequer começa, sendo constantemente estimulado pela curiosidade e o prazer da próxima boa história.

Capítulo “A maravilha que é ser um leitor fracassado”, do livro A biblioteca no fim do túnel (Arquipélago Editorial), de Rodrigo Casarin

Um leitor sugeriu que eu escrevesse sobre meus fracassos com os livros. De cara lembrei de Fracassinho. Caminhava bem com as ácidas memórias de Gary Shteyngart até ser atropelado pela vida e acabar por abandoná-las. Fracassei na leitura de Fracassinho.

Mas não só. Alguém já deve ter escrito isso por aí: o fracasso é amigo íntimo de qualquer leitor assíduo. Ser leitor é estar sempre tateando algum caminho possível dentro de um labirinto infinito. É descobrir a cada livro, a cada novo autor, que outras trocentas estradas, trilhas e picadas podem ser traçadas, e que estas também se desdobrarão em infinitas possibilidades. Talvez Borges tenha criado histórias sobre a multiplicidade de livros e bibliotecas justamente para afagar seus inevitáveis fracassos.

Ao tocar no assunto, creio que há um fracasso que vem imediatamente à cabeça dos colegas: o de não se entender com um grande livro. Ulysses, do Joyce, é um exemplo banal. O irlandês está acompanhado de colossos como Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, este muitas vezes mantido em segredo na lista de derrotas de leitores brasileiros. Acontece.

Não há como falarmos de fracassos sem levarmos em conta o fator tempo. Se não cheguei ao fim de O vermelho e o negro, de Stendhal, de Um conto de duas cidades, do Dickens, ou se só li o Inferno de A divina comédia, do Dante, foi por falta de mais horas no dia, juro. Mas é um revés, não nego.

Também é uma frustração virar a cabeça e trombar com Tempos ásperos, novo de Vargas Llosa, e Preço de noiva, da Buchi Emecheta. Quero ler? Claro. Mas também tenho a mesma vontade de ler pelo menos outros 30 livros que estão no meu campo de visão. Escolher um implica automaticamente decepcionar outros 29.

“Um romance puxa um conto, que puxa um poema. O ensaio leva à não ficção, a biografias, a relatos de viagem”

O bom é que sempre podemos inverter a relação com o tempo e colocá-lo a nosso favor. Olhar para um fracasso de momento e pensar: esse eu vou deixar para ler quando for mais velho. Graça infinita, do David Foster Wallace, provavelmente ficará para depois da Copa de 2030. A badalada Rachel Cusk, talvez o maior hype dos últimos meses, terá que aguardar as Olimpíadas de 2024.

Começar a ler e não curtir o livro. Começar a ler e não entender absolutamente nada do livro. Começar a ler, engrenar na leitura e descobrir que tudo aquilo é uma tranqueira lá pela página 134. Começar a ler e ser atropelado por outras obrigações. Começar a ler e ser atropelado pela necessidade ou vontade de outras leituras. Olhar para pilhas de livros e lembrar que só é possível, de fato, ler um por vez (mesmo quando você lê 15 títulos ao mesmo tempo, precisa escolher em qual livro seus olhos e sua cabeça estarão fixados, sabichão).

E há mais. Um autor leva a outro autor. Uma literatura leva a outra literatura. E daí você quer mergulhar nos japoneses, compreender a multiplicidade dos africanos, decifrar tudo de fabuloso que já foi produzido pelos latinos e também dar aquela boa atenção para a literatura italiana. Um romance puxa um conto, que puxa um poema. O ensaio leva à não ficção, a biografias, a relatos de viagem. A grande reportagem escrita pela Nobel também entra na mira. E nem abri a caixa dos quadrinhos.

Isso para não falar de uma questão central: afinal, o que é ler um livro? Mandar Dostoiévski com 20 anos, imagino, é algo bem diferente de lê-lo com 40. Se a releitura é fundamental e os grandes sempre têm algo de novo a apresentar a cada empreitada, o fracasso do leitor se torna uma constante.

Bom mesmo é olhar para esse fracasso, abraçá-lo e saber que seguimos em frente não apesar dele, mas sobretudo por conta dele. Podemos passar as 24 horas do dia mergulhados em livros e, paradoxalmente, a relação do que queremos ler apenas aumentará. O momento para que consigamos dar conta de certos monumentos uma hora chega (ou talvez não, vai saber). Conforta olhar para os livros e notar os infinitos caminhos para o fracasso que nos aguardam. Se perder nesse labirinto e seguir com a literatura como uma paixão é o que deixa tudo mais divertido.

Página Cinco, 10 de maio de 2021

P.S.: Já não fracasso mais com Tempos ásperos, do Llosa, e Preço de noiva, da Emecheta. Pode ser que Cusk tenha vez antes das Olimpíadas de Paris. Já o tijolão de David Foster Wallace talvez aguarde mais algumas Copas.

Rodrigo Casarin

Jornalista, especialista em Jornalismo Literário e colunista de livros do Uol (Página Cinco)

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