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“Bons leitores são formados desde bebês”

A psicopedagoga Janair Cassiano foi o braço direito de Magda Soares, referência nacional em alfabetização, e conta nesta entrevista porque investir no desenvolvimento de educadores infantis é crucial para melhorar o uso da língua portuguesa por jovens e adultos
Imagem de Leandro Silva

Janair Cassiano, psicopedagoga e coordenadora do Núcleo de Alfabetização e Letramento de Lagoa Santa (MG), teve o privilégio de trabalhar quase dez anos ao lado de Magda Soares, referência em alfabetização infantil no Brasil, com projeção internacional. Agora, Janair tem a missão de manter seu legado vivo e forte, já que a educadora faleceu em 1o de janeiro de 2023. “Ela nos deixou durante as férias escolares. Tivemos que fazer uma reunião de emergência, pois os professores queriam saber como daríamos continuidade ao projeto sem ela”, conta Janair.

Cassiano: “Alfabetização no tempo certo é importante”

O projeto a que se refere é o Alfaletrar, que revolucionou a educação infantil e o ensino fundamental I na rede de ensino do município mineiro. Lançado em 2007 por Magda Soares, o Alfaletrar dedica-se incansavelmente ao desenvolvimento profissional de professores, contribuindo para alfabetizar desde os primeiros anos de vida. Alfaletrar é também um livro e um conceito criado pela educadora, que prega que os processos de alfabetizar e letrar aconteçam ao mesmo tempo, e não separadamente, como era comum antigamente.

Enquanto a alfabetização diz respeito ao domínio individual da escrita e leitura, o letramento prevê o uso social de ambas habilidades, como observar o professor escrever o nome dos alunos na lousa ou debater uma notícia em sala de aula. “Quando andam juntos, esses dois processos tornam a aprendizagem mais rica e interessante, pois há um contexto que faz sentido, e não apenas uma sequência de letras”, explica Janair. Na entrevista a seguir, a professora destaca as principais contribuições de Magda Soares para a educação e aponta a falta de continuidade de projetos nas escolas e um ensino de pedagogia fraco como principais vilões da alfabetização e letramento.

Parepense: O que você destacaria no legado deixado por Magda Soares?

Janair Cassiano: A Magda Soares sempre se dedicou à pedagogia e, quando se aposentou, iniciou um trabalho voluntário para a rede pública em Lagoa Santa que durou 15 anos. Inicialmente, atendia professores dos anos finais do ensino fundamental, ficava em uma salinha, aguardando quem quisesse falar com ela. Em seguida passou a atender somente os professores dos anos iniciais e de educação infantil. Ela trazia sua bagagem teórica para este grupo de estudo. Os professores tentavam implementar a teoria em sala de aula, e não funcionava. Então ela começou a ouvir os professores e a pensar em conjunto em soluções específicas para cada problema. A partir desse olhar para o chão da escola, começamos a colher ótimos resultados entre docentes e alunos. Ela tinha uma capacidade de escuta excepcional. Magda era humilde, simples e muito atenciosa. Dessa relação entre ela e os docentes, brotavam boas conversas e iniciativas.

PP: Qual foi a principal contribuição dela para alfabetização de crianças?

JC: Apesar de ter trabalhado e estudado temas relacionados a todas as faixas etárias, a Magda priorizou a importância de se dedicar à alfabetização infantil, com foco no desenvolvimento profissional dos professores. O pressuposto dela é que a alfabetização é a base do sucesso escolar, por isso, deve começar cedo e envolver brincadeiras, jogos, histórias e outros recursos. A educação infantil não deve ser apenas diversão, mas ter uma intencionalidade. A partir do momento que a criança vai para a escola, ela está sendo escolarizada e aí há uma oportunidade de alfabetizá-la de modo lúdico. Se deixarmos todo o processo de alfabetização para o primeiro ano do ensino fundamental, não dá para concluir o aprendizado até o final do segundo ano, como prevê a legislação. O papel da Magda foi pensar e compartilhar ideias para os professores realizarem essa missão da melhor forma possível.

PP: Na prática, o que significa iniciar a alfabetização desde cedo?

JC:  O Alfaletrar prevê o início da alfabetização na educação infantil. Quando a professora conta uma história para bebês, está plantando a semente deste processo. Quando coloca a foto da criança de 2 anos junto ao seu nome e lê essa informação em voz alta, cria uma oportunidade de visualização das letras, que serão lembradas mais tarde. Quando faz perguntas sobre os desenhos de um livrinho para uma criança de 3 anos, ela está trabalhando a interpretação e compreensão de textos a partir de imagens. Lá na frente, o aluno terá mais facilidade para realizar inferências e compreender textos.

PP: Como surgiu e está estruturado o projeto Alfaletrar, criado por Magda Soares?

JC: O projeto Alfaletrar surgiu dos encontros da Magda com os professores e se estruturou como uma grande rede, com 25 escolas públicas, que trocam ideias, experiências e dificuldades semanalmente, reunindo educação infantil e fundamental I, através de representantes de cada escola. Dessa intensa cooperação surgem materiais e ações dedicadas ao aprimoramento contínuo de educadores alfabetizadores. É uma ação de baixo para cima, na qual os professores são os protagonistas. Eles trazem questões, pensam juntos, formam seus pares. Nossa prioridade não é disseminar uma teoria ou método, mas fazer a articulação entre conhecimento acadêmico e a realidade dos professores, que é central para as iniciativas darem certo.

PP: Quais são os principais resultados obtidos?

JC: A alfabetização dos alunos de escolas da Grande Belo Horizonte estava abaixo do preconizado pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Essa defasagem foi superada pelas escolas que participam do projeto Alfaletrar. Viramos referência nacional em alfabetização infantil e no exterior o trabalho também é reconhecido. Vários municípios nos procuram para saber mais e trabalhar com a mesma dinâmica do Alfaletrar. Nem a pandemia nos paralisou. Ao contrário, foi o momento de a Magda mergulhar no ambiente digital, que não era familiar para ela. Essa novidade levou o Alfaletrar para um número ainda maior de educadores.

PP: A que você atribui o grande sucesso do projeto?

JC: Ter o apoio e a visão da Magda Soares fez toda a diferença. Ela marcou os educadores de um modo único. Além disso, o projeto tem continuidade, já dura 16 anos, apesar das mudanças políticas e partidárias. Os professores não abrem mão de participar do Alfaletrar, fazem pressão nesse sentido e o poder público tem respeitado essa posição deles. A educação perde muito com as rupturas e mudanças que são feitas por novos prefeitos e governadores. A alfabetização não acaba em quatro anos, ela precisa ser ampliada e aprofundada por muito tempo. Por fim, o sucesso está muito ligado ao fato de trabalharmos diretamente com os professores e suas dificuldades dentro da escola. É uma construção coletiva e atenta às especificidades de cada participante.

“A formação em pedagogia deveria ser mais sólida, criativa e realista, pois o aluno depende do educador para se alfabetizar e evoluir”

PP: Qual é a sua visão sobre a alfabetização hoje no Brasil?

JC: Estamos aquém do que seria esperado em termos de qualidade na alfabetização infantil. Em Língua Portuguesa, os estudantes, em sua maioria, apresentam baixa capacidade de fazer inferências e de compreender textos. Uma das causas desse quadro é a falta de continuidade das propostas pedagógicas, que mudam ao sabor dos ventos políticos, interrompendo processos e dificultando o avanço de melhorias dentro das escolas. Tudo muda o tempo todo. Outra questão séria é o ensino de pedagogia. Essa formação precisaria ser mais sólida, criativa e realista, pois o aluno depende do educador para se alfabetizar e evoluir. Se o educador desconhece bons recursos pedagógicos, como ele poderá ajudar seus alunos, sobretudo aqueles que sentem mais dificuldade? Fica impossível.

PP: O que você pensa sobre o uso de recursos tecnológicos nas escolas, pensando em tablets, computadores e similares?

JC: Durante a pandemia o projeto Alfaletrar disponibilizou um tablet para cada aluno e isso foi essencial para eles não ficarem à margem da escola durante o confinamento. Considero importante que crianças e jovens saibam utilizar as ferramentas tecnológicas, extraindo o melhor delas. Mas não podemos tapar o sol com a peneira. Muita gente hoje escreve e lê mal porque adota a linguagem instantânea de aplicativos e redes sociais para tudo e lê poucos livros. Para complicar, a leitura em tela é mais cansativa e superficial do que a impressa, então temos vários bons motivos para pensarmos e repensarmos o uso adequado e responsável das tecnologias digitais na sala de aula, sabendo dosar o novo – tecnologia – com outros suportes pedagógicos já consolidados.

PP: Qual é o papel das famílias na formação de leitores?

JC: Pais e escolas devem estabelecer uma parceria. Os pais não podem encarar a escola como um depósito onde eles deixam os filhos para poderem trabalhar. As famílias participativas estimulam uma relação mais saudável dos alunos com a escola e favorecem imensamente o processo de alfabetização e letramento. É visível a diferença entre um aluno cujos pais estão envolvidos com a escola e aqueles que não estão. Além disso, ler em casa com os filhos, visitar bibliotecas e feiras literárias com crianças e jovens são ações decisivas para criar e manter o hábito da leitura. Outro ponto é que antigamente os pais valorizavam mais as escolas e isso se refletia positivamente na aprendizagem. Hoje, a escola é menos valorizada pelos pais e alunos. É algo sério, que requer profundas mudanças na sociedade.

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