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Assim o educador, fundador e superintendente do Instituto Rodrigo Mendes, Rodrigo Hübner Mendes, define a mudança que um grave acidente trouxe à sua vida. Entre altos e baixos enfrentados como paraplégico, ele atribui suas inúmeras realizações à capacidade de saber mudar. Confira sua entrevista à Parepense
Imagem da Freepik

Praticante de esportes na adolescência, Rodrigo Hübner Mendes sonhava em ser médico, inspirando-se no ortopedista que salvou seu joelho lesionado. A lesão foi o primeiro obstáculo mais sério que enfrentou na vida, já que exigiu muitas sessões fisioterapia, uma cirurgia e um longo afastamento dos campos de futebol, sua grande paixão. 

O que ele não poderia imaginar era o desafio que viria logo adiante: tornar-se tetraplégico, em decorrência de um tiro sofrido durante um assalto. No hospital, em estado gravíssimo, Mendes percebeu que precisava reagir. “A ruptura era tão extrema, e a possibilidade da morte, tão concreta, que eu não podia me dar ao luxo de desperdiçar tempo com devaneios”, conta. A partir daí, teve início um extenuante processo de recuperação, o sonho de cursar medicina foi cancelado e a sua trajetória precisou ser reinventada.


crédito: Wanezza Soares

Aliando a capacidade de aceitação à de transformação, Mendes foi longe. Formou-se em administração, tornou-se educador, fundou o Instituto Rodrigo Mendes (IRM), dedicado à educação inclusiva, e escreveu o livro O potencial da mudança – O desafio de navegar pelas incertezas (Objetiva), entre muitas outras conquistas. Sua história e seu trabalho já o levaram ao Fórum Econômico Mundial, a parceria com a ONU e a um papel de destaque nas políticas públicas da educação. A seguir, Mendes conta como se deu sua guinada e reflete sobre a importância de saber mudar.

Parepense: Hoje, olhando em retrospecto, que compreensão você tem do acidente que sofreu e das mudanças que ele acabou provocando em sua vida? Esse entendimento foi se modificando ao longo do tempo?

Rodrigo Mendes: Relembrando o conceito de “retrospective sense making”, de Karl Weick, de fato essa percepção foi sendo modificada. Não é óbvia a constatação de que, se colocarmos uma lente de aumento sobre a trajetória de vida de qualquer pessoa, fica claro que todo mundo passa por viradas. Algumas planejadas, outras não. Eu me lembro das projeções que fazia para o futuro quando era ainda adolescente, e, sendo honesto, imaginava uma espécie de linha reta. Quer dizer, meu plano era me formar em medicina, fazer o meu melhor para oferecer mais qualidade de vida pras pessoas, não me acomodar, e seguir jogando meu futebol e tocando meu violãozinho. Olhando agora para trás e fazendo uma radiografia do percurso, o que aconteceu não tem nada de linha reta. O desenho está muito mais para um passeio de montanha russa. Quer dizer, acabei me formando em administração, trabalhei por vários anos como consultor de empresas, fundei um instituto na área da educação e hoje, boa parte do meu trabalho é com políticas públicas. Todas as atividades que eu nunca tinha imaginado desempenhar. Ou seja, a minha trajetória e as outras histórias que abordo no livro acabam compondo um bom emblema da ideia de que mudanças ao longo do jogo são uma certeza. E, mesmo sabendo que essa ideia não apresenta nenhuma originalidade — pois já foi explorada por inúmeros filósofos ao longo da história –, me parece que ela ainda pode alimentar conversas instigantes, uma vez que somos muito resistentes à impermanência dos mares por onde navegamos. É claro que isso não invalida o exercício de se planejar. Boa parte da nossa rotina é constituída por ações que foram planejadas e, posteriormente, executadas. Não é à toa que ficou famosa uma frase, creditada a Abraham Lincoln: “A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo”. O risco é cair na tentação de acreditar que esse comando é absoluto e inabalável.

PP: Você renunciou a vários sonhos em virtude do acidente, mas logo se recompôs e começou a planejar e realizar seus planos em outra direção. O que te ajudou a virar a chave tão rápido e de maneira tão efetiva?

RM: Na verdade, nem foi tão rápido assim. Investi três anos dedicando infinitas horas de fisioterapia na tentativa de recuperar minha condição física. Até que chegou um momento em que tive uma tomada de consciência: tinha feito tudo o que podia e havia chegado e hora de me desprender de certas referências e zarpar para novos mares, mesmo sem saber o que viria pela frente. Por outro lado, hoje entendo que a situação limite que surgiu logo nos primeiros dias de hospital, me levou a assumir um ponto de vista bastante pragmático, o que acabou jogando a meu favor. A ruptura era tão extrema, e a possibilidade da morte, tão concreta, que eu não podia me dar ao luxo de desperdiçar tempo com devaneios. Tive esse insight logo na largada. Ou canalizava toda minha energia pra missão de sobreviver ou qualquer desvio de foco podia me nocautear para sempre. Pode soar paradoxal mas, acho que teria sido mais difícil se a minha situação me desse algum tipo de conforto e eu perdesse meu norte. Quer dizer, consegui seguir em frente porque tinha um objetivo muito claro: fazer valer tudo aquilo que vinha recebendo.

PP: Por que o IRM aposta em inclusão na educação, e não no trabalho, por exemplo? Qual é a sua avaliação sobre a educação inclusiva no Brasil: o que já conquistamos e onde precisamos avançar?

RM: Falando agora um pouco sobre educação, que é o foco do meu trabalho atualmente, gosto muito da ideia de que tão importante quanto falar sobre a má distribuição de renda no mundo é falar sobre a má distribuição de educação no mundo. Em outras palavras, não vamos chegar muito longe enquanto toda pessoa não tiver, minimamente, acesso ao conhecimento, ao mercado de trabalho, acesso à dignidade. E isso se aplica também para pessoas com deficiência. Esse é o propósito que tem orientado minha vida. Fundei o Instituto Rodrigo Mendes com a missão de garantir que toda criança e adolescente com deficiência tenha a chance de alcançar o seu melhor como ser humano, de alcançar autonomia por meio da educação. Trabalhamos para que nenhuma criança fique fora da escola por causa de uma deficiência ou um transtorno. Como fazemos isso? Investimos em três frentes: (1) produção de pesquisa e conhecimento sobre o que existe de mais avançado no mundo nessa área; (2) formação de professores e gestores, e (3) advocacy, que é um corpo a corpo junto a legisladores e líderes que mexem nos ponteiros da educação, para garantir que a nossa agenda não saia do radar.

 “Herdamos e alimentamos a crença de que situações impostas inviabilizam a realização pessoal”

PP: Há uma crença de que o brasileiro é versátil e se adapta com facilidade ao novo. Você vê essa capacidade de adaptação entre os atendidos pelo IRM e nas pessoas com deficiência, de modo geral?

RM: Não me parece que essa habilidade tenha algum tipo de relação com o fato da pessoa conviver com impedimentos de alguma natureza, sejam eles físicos, intelectuais ou sensoriais. O que talvez possamos considerar é que, quando uma pessoa assume um ponto de vista de relativizar os desafios que ela enfrenta, a chance de ela construir ações mais flexíveis torna-se maior. Em outras palavras, situações adversas podem favorecer uma percepção dessa relatividade. Mas isso não é uma regra. Somente uma possibilidade.

PP: Você tem inúmeras iniciativas bem-sucedidas, tanto no aspecto pessoal quanto no profissional. Quais são seus sonhos agora?

RM: Em algum momento, quero me dedicar à produção de uma série voltada a adolescentes, inspirada nas minhas memórias de infância e adolescência. O trabalho no IRM ainda me traz muito prazer e enxergo um horizonte de tempo considerável à frente da organização. Mas devo incluir esse projeto em minha rotina nos próximos anos.

PP: Pensando na matriz que está em seu livro, com as variáveis deliberação e imposição, e ruptura e mudança, que tipo de combinação você vê com mais frequência? Qual combinação considera mais afinada com o conceito de impermanência e por quê?

RM: A matriz, de certa forma, foi criada a partir do conceito de impermanência. Mesmo que tenhamos períodos de certa continuidade ao longo de nossa trajetória, o acaso está sempre na próxima esquina, pronto para nos desestabilizar. Resumindo o modelo apresentado pelo livro, os fatos que compõem a nossa linha do tempo podem ser classificados em duas vertentes: as continuidades, caracterizadas pela preservação do status quo ou a repetição de um determinado padrão. E as rupturas, caracterizadas por desvio de rota. Sob outro ponto de vista, as situações podem também ser organizadas com base em duas outras categorias: as deliberações, quando temos liberdade para tomar decisões sobre o nosso percurso, e as imposições, quando somos coagidos por forças externas e perdemos o controle do leme. O cruzamento desses dois eixos resulta em uma matriz que engloba quatro situações clássicas da trajetória humana: a estabilidade, a estagnação, a mudança por opção e a mudança por imposição. Toda pessoa está se movimentando por essas situações ao longo do tempo. Lembrando que, em geral, estamos desatentos a essa dinâmica, algumas perguntas merecem ser feitas para que possamos nos entender melhor, refletir com mais densidade e usufruir de nossos potenciais. A começar pela indagação: em quais quadrantes da matriz almejamos estar em cada dimensão da vida? Tenho feito essa pergunta há décadas, em aulas e palestras, e as respostas revelam duas crenças equivocadas: em primeiro lugar, a ilusão de que é possível controlar permanentemente o desenho da nossa navegação. Esse equívoco resulta de uma miopia de muitos graus. Epiteto, filósofo grego do século I, já fazia um bom alerta para isso. De acordo com ele, “algumas coisas estão sob o nosso controle e outras não estão. Só depois de aceitarmos esta regra é que a tranquilidade interior e a eficácia exterior se tornam possíveis”. Em segundo lugar, herdamos e alimentamos a crença de que situações impostas inviabilizam a realização pessoal. Aí, surge outra pergunta que merece ser feita: “qual seria, então, o melhor quadrante para se alcançar a realização pessoal?”. O livro não tem a pretensão de apresentar uma resposta categórica para essa questão, o que traria uma boa dose de arrogância. Meu objetivo é estimular o leitor a buscar suas próprias respostas.

“Refletir com mais densidade sobre as mudanças é uma virtude que deveríamos perseguir”

PP: De que forma a contemporaneidade, marcada pelo imediatismo, individualismo e excesso de informação, dialogam (ou brigam) com a sua matriz?

RM: Talvez a matriz possa ser explorada como uma ferramenta que nos auxilia a viver em um mundo cada vez mais líquido, em que a relação entre o tempo e a qualidade das nossas experiências vai se tornando cada vez mais incongruente. De toda forma, seja em um estilo de vida mais contemplativo ou em uma dinâmica mais instantânea, refletir com mais densidade sobre as mudanças é uma virtude que deveríamos perseguir.

PP: Poderia falar sobre as principais conquistas do Instituto Rodrigo Mendes até aqui e como vê o futuro dele?

RM: Nesses quase 30 anos, já passaram pela nossa plataforma de formação mais de 110 mil professores, dos 26 estados, que impactaram mais de 2 milhões de estudantes. Esses números já têm alguma substância, mas entendo que isso é só o começo. Ainda há muito trabalho pela frente para transformar as escolas em ambientes que apostam no potencial de cada criança, seja qual for o seu jeito de ser no mundo.

PP: Como resumiria seu aprendizado com os desafios que enfrentou?

RM: Cada um de nós leva solavancos quando a força da maré arranca o leme da nossa mão. Mesmo que tomemos todas as precauções para evitá-los, eles são imprevisíveis, fogem ao nosso controle e sempre farão parte da jornada. Em vez de consumir energia discutindo por que eles existem, me parece mais relevante pensar sobre o que fazer quando esses maremotos nos assolam. Mesmo tendo se tornado uma espécie de jargão, vale relembrar as aspas de Sartre, de quem tomo a liberdade para ajustar o tempo verbal: “Não importa o que a vida faz de você, mas o que você faz com o que a vida faz de você”.

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