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Tolstoi, Dostoievski e a vida corporativa

Autores russos guiam a reflexão de Diego Marconatto, professor de mestrado na Fundação Dom Cabral (FDC), sobre como a arte pode nos redimir, trazendo mais beleza, amor e autenticidade para nosso dia a dia
Imagem de autor desconhecido, licenciada em CC BY-SA-NC

Repare:

  • o autor inicia o artigo citando a obra A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, na qual o protagonista, à beira da morte,  conclui que sua vida foi limitada ao desejo de ter uma imagem social exitosa, que ele descobre sem sentido;
  • para abordar o que seria uma redenção do indivíduo no trabalho, Marconatto recorre a Dostoievski e aborda a importância do autoconhecimento e da decisão pelo amor como antídoto de autenticidade em um mundo de aparências;
  • apesar das demandas e da mediocridade do cotidiano, o autor encerra sua reflexão convidando os leitores a fazer escolhas mais conscientes, inspiradas pela arte e verdade.

Em A Morte de Ivan Ilitch, Tolstoi narra a história de um burocrata russo do século XIX que, confrontado pela crueza da própria doença terminal, vê-se obrigado a confessar à própria alma que sua vida foi uma imensa farsa. Ele viu que existiu para construir e manter uma imagem social de êxito oca, sem sentido ou propósito. Não viveu ele; viveu sua máscara.

Em seu tribunal, Ivan sabia da inutilidade do seu trabalho. Mesmo assim, vivia bêbado do status e da posição que lhe proporcionava. Em sua casa, Ilitch sabia da falta de afeto real entre os seus. Mesmo assim, adorava a imagem de família aristocrática que projetava.

A máscara de Ivan Ilitch era tão bem moldada ao seu rosto que, quando os espasmos do porão da sua consciência tentavam tirá-la, ela já tinha se apegado à sua cara. Só o prospecto da própria aniquilação foi capaz de arrancá-la… Quase tarde demais.

O mundo girou muito desde o século XIX, mas o homem velho continua vivendo em nós. Os Ivan Ilitchs do século XXI vêm repaginados com mil bugigangas eletrônicas que nunca conseguem preencher espaço o suficiente para enterrar a verdade e calar a voz da consciência. O que mudou foi apenas a espessura da máscara: ela está mais grossa, pesada, mais agarrada à nossa cara.

Quando olhamos o ambiente corporativo, isso é muito óbvio. Sua alta pressão atmosférica nos empurra mais e mais para modelos fechados de comportamento, vocabulário, pensamento e opinião pública. As empresas nos ensinam o que é certo e errado, os comportamentos desejáveis e reprováveis. Meu valor se mede pelo quanto me encaixo no formato exato dos grandes discursos.

Nesse nosso mundo que se diz cada vez mais diverso, nada é mais repugnante à forma mentis imperial do que viver o limite da diversidade: tirar a máscara e ser o que se realmente se é – único. Nunca a frase do tcheco atormentado fez tanto sentido: “tive vergonha de mim próprio quando percebi que a vida é uma festa de máscaras, e participei com o meu verdadeiro rosto” [1]. Ai de mim se eu não aderir aos jargões. Ai de mim se eu quiser dar uma opinião que fure o zeitgeist acachapante que asfixia a consciência e enche os consultórios. Dar plena vazão ao meu espírito é o maior pecado mortal.

“Quem nos salvará? A tríade da verdade, da beleza e do amor. A literatura clássica usou essas três realidades para construir o nosso botezinho salva-vidas”

É assim que assim chegamos a um mundo amputado e materializado onde importa apenas a função, onde “se conhece o preço de tudo e o valor de nada” [2], onde o espírito é negado, combatido, sufocado, onde a imanência mais rasteira sempre tem a palavra final, onde só poderia grassar a loucura e o desespero. Ortega y Gasset já tinha avisado que as demandas eternas e universais da nossa consciência, sempre que traídas, nunca morrem; ao contrário: ganham a forma de uma enorme sombra acusadora.

De nada adianta tentar afogá-las no tsunami pegajoso de dopamina barata derramada das nossas telas agora onipresentes. Horas de vida moídas no Facebook, emshopping, power yoga no parque, nada disso silenciará as demandas da nossa consciência. O veganismo anti-establishment que enriquece o capitalista dono da franquia de produtos naturebas também não saciará a natureza humana.

Quem nos salvará? A tríade da verdade, da beleza e do amor. A literatura clássica usou essas três realidades para construir o nosso botezinho salva-vidas. Nos grandes livros somos apresentados a nós mesmos, nos encontramos, tiramos a máscara, finalmente. Neles, voltamos para casa.

Outro autor russo. Não houve maior gênio na literatura do que Dostoievski. Ninguém fez uma guerra mais aberta às máscaras do que Dostoievski. Suas histórias tocaram os nervos mais escondidos da realidade. Na essência das suas obras está essa oposição entre o espírito livre e as ilusões e vaidades do mundo. Seus personagens mais santificados, mais livres, mais humanos eram aqueles que pagavam o preço vital de ter a coragem de viverem o seu espírito livre das máscaras. Qual preço? Os nomes de duas das suas obras mais fantásticas entregam a resposta: O sonho de um homem ridículo e O idiota. O preço é não ser levado a sério por um mundo esquecido da própria alma. 

O idiota conta a história de um príncipe pobretão que reunia em si a essência de um ser humano profundamente bom. Adivinhem: a adesão à verdade, à beleza e à caridade.

O príncipe Míchkin nunca mentia, nem para si e nem para os outros. Envolto em mil peripécias arquitetadas pelos jogos de espelhos dos homens – essas máscaras que nada mais são do que a traição da verdade – Míchkin sempre criava as soluções e saídas mais fantásticas a partir da sua voz sincera, por causa dela mesma. Era tão transparente, tão veraz e simples… Tão estranho a um mundo acostumado a falsidade, que era visto como um mero idiota.

“A literatura universal nos cura da loucura do mundo. Mas quem tem coragem de ser louco e escândalo para o mundo?”

Assim também é o protagonista inominado de uma outra história de Dostoievski: O sonho de um homem ridículo. Nessa breve historieta, vemos em um único relance a trajetória inteira da nossa humanidade: desde a queda dos nossos pais até hoje. Enxergamos de um modo muito vívido como viramos as costas para a verdade para adorar as nossas máscaras. E aqui também ridicularizado é o homem que ama a verdade.

A verdade cura, diziam os jesuítas. O ser autêntico é verdadeiro. Esquecemos disso. Para nós, autenticidade é a mais pura inautenticidade: buscar segurança psicológica se associando a algum grupinho de referência. Autenticidade é conhecer-se com profundidade e dar vazão a si mesmo na prática objetiva da vida. Se se acredita na existência de Deus, então o que Deus mais quer é que cada um seja o que realmente é – Ele mesmo é ‘Aquele que é’.

E o príncipe Míchkin amava a verdade na beleza. Na pena de Dostoievski, ele disse que a beleza salvará o mundo. A beleza eleva, preenche, sacia. As catedrais europeias visitadas por milhões de turistas não católicos – incluindo agnósticos e  ateus renhidos – todos os anos atestam o poder da beleza. Já a arquitetura horrenda e caótica de muitas cidades modernas – para ficarmos apenas em um único exemplo – desumaniza, anula o indivíduo, desconfigura a face do espírito humano, mata o amor.

Míchkin amava. Para ele, o amor não era um sentimento adocicado; era uma decisão firme de entregar a própria vida, na verdade e na beleza, a serviço daqueles que cruzavam o seu caminho. Míchkin tinha no amor o centro da sua vida, a razão da sua existência. A vida de Míchkin estava escrita na carta do apóstolo velho [3]:

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.

O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha; mas, havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte, conhecemos e, em parte, profetizamos. Mas, quando vier o que é perfeito, então, o que o é em parte será aniquilado.

Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o amor.

É só isso.

A literatura universal nos cura da loucura do mundo. Mas quem tem coragem de ser louco e escândalo para o mundo? Quem é como o Deus louco de amor que uniu todo o mundo – norte, sul, leste e oeste – na beleza, na verdade e no amor lancinantes de uma morte humilhante na cruz do mundo?

Chegou segunda-feira. Precisamos comprar o pão, pagar as nossas contas. Precisamos voltar a preencher nosso espacinho na enorme maquinaria do mundo.

Voltemos. Mas voltemos com a vontade de ver e manifestar beleza nos nossos atos mais comezinhos. Voltemos com os olhos na verdade. Voltemos por amor aqueles a quem amamos, por amor à nossa vida. Se a abraçarmos com amor à beleza e à verdade, uniremos o céu e a terra e reclamaremos o que havíamos perdido: nossa alma.

A cura não está longe. A escolha é de cada um. Arranquemos nossas máscaras e deixemos queimar em nós tudo o que não é verdade.

Referências

[1] KAFKA, Franz. A Metamorfose, Pé da Letra, 2021.

[2] Frase atribuída a Oscar Wilde.

[3] 1ª carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 13

Diego Marconatto

Professor de mestrado na Fundação Dom Cabral (FDC)

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