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Uma tarefa para as escolas de negócios: decolonizar

Professora da Universidade de Quebec em Montreal, Chahrazad Abdallah propõe uma revolução no conhecimento acadêmico, especialmente nos cursos de administração, onde o olhar do homem, branco e ocidental domina desde a grade curricular até modelos de gestão, excluindo outras referências
Imagem de Gabriela Garcia

Repare:

  • a autora, de origem tunisiana, trata do assunto da decolonização, tema que cresce em importância nas ciências sociais, mas ainda é pouco explorado no universo organizacional;
  • Abdallah argumenta que o sistema capitalista se desenvolveu por meio da colonização de territórios, de corpos e também de mentes, formas de pensar, existir e aprender e, portanto, do conhecimento;
  • de acordo com a professora, o processo de decolonização não é simples e envolve o fato de que o sujeito primordial do conhecimento vem sendo o homem branco ocidental;
  • na sua visão, somente desafiando os fundamentos do conhecimento ocidental moderno e seu caráter hegemônico e excludente será possível pensar de forma diferente sobre a gestão, a partir das margens das Business School;
  • a decolonização do conhecimento gerencial significa, então, assumir uma posição deliberada “na margem”. Ela não virá das próprias instituições, mas a partir de seus locais de dissidência epistêmica;
  • estar à margem significa posicionar-se contra qualquer aspiração de dominar o conhecimento, domesticá-lo, cercá-lo e legitimá-lo. Estar à margem significa questionar aqueles que dominam o conhecimento e querem contê-lo.

A decolonização da universidade como instituição de produção, disseminação e legitimação do conhecimento, e como local de poder e dominação, é um projeto político e epistêmico que começou em 2015 na África do Sul e no Reino Unido [1] e, mais recentemente, teve um grande impacto internacional. As universidades, e mais especificamente as escolas de negócios, embarcaram em vários projetos para revisar seus currículos, modificar seus programas de estudo e, em alguns casos, reavaliar suas práticas institucionais. Entretanto, apesar de seu poder discursivo inegavelmente sedutor, a decolonização do conhecimento é um processo lento no mundo acadêmico, com resultados mistos [2]. No entanto, a relevância de descolonizar a produção de conhecimento nas escolas de administração, onde o sistema capitalista neoliberal é perpetuado por uma lógica colonial de dominação, exploração e exclusão, é mais urgente do que nunca. Em um momento em que a brutalidade do sistema e seus efeitos deletérios se intensificam a cada dia, não é apenas necessário, mas absolutamente fundamental, preocupar-se com a maneira pela qual o conhecimento que está no centro desse sistema nasce, se perpetua e forma um campo hegemônico incontestável.

Há uma vasta literatura disponível sobre as características específicas da Business School como uma “ferramenta do império” [3]. A escola de negócios atualmente é a principal produtora da ideologia neoliberal e de seu sistema de criação de valor, que se baseia principalmente na produtividade, no desempenho e no crescimento contínuo. De acordo com dados recentes, há cerca de dez mil Business Schools em todo o mundo [4] e mais de 250 mil alunos obtiveram seu diploma de maior prestígio, o Master in Business Administration (MBA). Essa instituição é objeto de um número cada vez maior de estudos críticos [5], e esses estudos concordam em vários pontos:

  • as escolas de administração de empresas são caracterizadas por um forte domínio da lógica gerencial neoliberal;
  • há uma crescente mercantilização do conhecimento;
  • e um reforço dos sistemas hierárquicos de avaliação de pesquisa, criando pressões muitas vezes insustentáveis para os pesquisadores forçados a atingir métricas de desempenho impossíveis. 

A situação resultante para aqueles que trabalham e estudam em escolas de negócio não é feliz: maior insegurança no emprego, fadiga generalizada, taxas de ensino exorbitantes que levam a dívidas esmagadoras e uma série de violências materiais e epistêmicas contra várias minorias, desde ataques racistas até má conduta sexual, e desde a invisibilização epistêmica até a subalternização do conhecimento.

Esse quadro sombrio não é fruto de minha imaginação, mas de minha experiência em Business Schools durante quase 30 anos, primeiro como aluna e depois como professora. Ao longo desses anos, a natureza hegemônica e excludente do conhecimento produzido e legitimado pelas instituições ficou cada vez mais clara para mim. Esse corpo de conhecimento está amplamente enraizado em uma concepção modernista da ciência e da sociedade que se baseia em uma compreensão particular da relação entre os seres humanos e o mundo ao seu redor, mas também e acima de tudo, em seu poder excessivo e em seu acesso ilimitado aos recursos naturais, materiais e simbólicos do mundo [6]. A história desse excesso de poder e da relação instrumental com o mundo constitui a própria dinâmica do capitalismo e sustenta seus princípios.

Nos últimos séculos, esse sistema capitalista se desenvolveu por meio da implementação sistemática de diferentes modos de exploração e de uma crença imutável na criação de riqueza infinita. O colonialismo, ou a forma de expansionismo imperial que permitiu o acesso ilimitado a recursos sob o falso pretexto de “civilizar” o mundo, foi a principal força motriz por trás do sistema capitalista e não apenas permitiu que ele funcionasse, mas, acima de tudo, ele construiu um imaginário colonial que ainda está conosco décadas depois das efetivas descolonizações [7] Esse imaginário colonial é impulsionado por uma lógica de inferiorização racial das populações colonizadas e sua dominação econômica, política, cultural e epistêmica. Em outras palavras, não estamos apenas colonizando um território ou corpos, mas também, e acima de tudo, mentes, formas de pensar, existir e aprender e, portanto, conhecimento.

“Somente desafiando de forma sistemática os fundamentos do conhecimento ocidental moderno é que poderemos pensar de forma diferente”

A decolonização do conhecimento não é uma questão simples, portanto, quando colocamos o processo no longo contexto de dominação e subjetivação colonial. Durante séculos, o ramo “armado” desse sistema teve de garantir a reprodução e a perpetuação de seu modo de operação. Dessa forma, o capitalismo e o colonialismo sempre andaram de mãos dadas e foram produzidos, reproduzidos e desenvolvidos juntos [8]. Historicamente, as escolas de administração de empresas fazem parte do “braço armado” do sistema capitalista, e uma lógica colonial que racializa e explora ainda está em ação dentro delas. Por exemplo, não há nenhuma menção às origens racistas das teorias de Frederick Taylor [9], o “inventor” da produtividade; ou à articulação supremacista branca da “gestão racial” nas décadas de 1920 e 1930[10]; ou ao fato de as organizações ainda serem apresentadas como entidades “neutras” [11] compostas por pessoas cuja diversidade é puramente uma questão de características individuais e não reflete de forma alguma qualquer determinação social. A construção do conhecimento nas escolas de negócio tem se baseado nessas premissas, que nunca foram discutidas e sempre constituídas.

Iniciativas recentes para descolonizar as Business School no chamado “Norte Global” são muito promissoras: repensar currículos, diversificar textos de referência, criar comissões e workshops para discutir diversidade e inclusão, ampliar a oferta de cursos para torná-los mais representativos, e assim por diante. Essas iniciativas estão sendo adotadas pelas instituições em resposta à demanda persistente dos alunos e da sociedade em geral, após as mobilizações raciais que se seguiram ao assassinato de George Floyd em 2020 e suas repercussões muito além das fronteiras dos Estados Unidos. No entanto, essas iniciativas de decolonização institucional são mais uma questão de modalidades performáticas cosméticas carregadas por discursos sobre diversidade e inclusão [12], do que de questionamentos genuínos da colonialidade dos fundamentos epistêmicos do conhecimento produzido por essas mesmas instituições.

De minha parte, proponho uma crítica afirmativa e radical a esses modos institucionais de decolonização a partir das margens das instituições, ou seja, a partir de uma posição minoritária dentro das escolas de negócios que questiona sistematicamente a legitimidade do conhecimento estabelecido, mas também, e acima de tudo, como essa legitimidade é estabelecida e mantida. Sugiro que somente desafiando de forma sistemática e contínua os fundamentos do conhecimento ocidental moderno, e seu caráter hegemônico e excludente, é que poderemos pensar de forma diferente sobre a gestão a partir das margens das Business School.

Eu me explico. Somente um esforço real para colocar a construção do conhecimento à prova pode levar a uma desestabilização e a um questionamento real do modo de produção atual. O que chamo aqui de margens de gerenciamento não são apenas localizações geográficas ou espaços fora do centro. A margem é, antes de tudo, uma posição epistêmica, em outras palavras, uma forma de abordar o conhecimento.

Até agora, o sujeito primordial do conhecimento vem sendo homem, branco, ocidental.  O “sol” do conhecimento, como diz Gayatri Chakravorty Spivak. Esse sujeito central do conhecimento é aquele através do qual tudo é construído: teoria política, modelos econômicos, teorias sociais, modelos de gestão. É o prisma pelo qual todo o universo é inculcado em nós, quer cresçamos em Túnis, em Londres ou no Rio de Janeiro. Esse sujeito central é o também o “mestre” do conhecimento, aquele que o contém, o delimita e o domina. É contra esse mestre e sua dominação de nosso imaginário que podemos nos posicionar, e é esse posicionamento que constitui, para mim, a margem.

Estar à margem, portanto, significa nos posicionarmos contra o conceito de mestre do conhecimento, contra qualquer aspiração de dominar o conhecimento, domesticá-lo, cercá-lo e legitimá-lo. Estar à margem significa, portanto, adotar uma posição de princípio: uma posição que questiona e preocupa aqueles que dominam o conhecimento e querem contê-lo. As margens são povoadas pelas figuras do aprendiz, do aluno, da pessoa que não alega ter dominado um determinado conhecimento, mas que busca trazer à tona sua multiplicidade. Em termos concretos, trata-se de virar o conhecimento estabelecido de cabeça para baixo, sacudi-lo e ver o que acontece. A margem em gestão é, portanto, uma posição de oposição a qualquer estabelecimento do sujeito central ocidental como mestre e detentor do conhecimento, e uma descentralização sistemática da produção de conhecimento, em direção a outras formas de subjetividade e outras relacionalidades. Inverter a figura do gerente, derrubar os fundamentos históricos plantacionistas e racistas [13] da gestão como uma tecnologia de poder baseada em uma busca frenética por produtividade e desempenho, repensar os vínculos sociais nas organizações em termos das estruturas de dominação existentes na sociedade, rejeitar a centralidade da posição dominante e nos permitir pensar fora dela.

“No Brasil, a tradição crítica em administração é bem estabelecida e foi, inclusive, uma das primeiras a se desenvolver”

A decolonização do conhecimento gerencial significa, portanto, antes de tudo, tomar uma posição deliberada nas margens, em outras palavras, opor-se deliberadamente ao sistema que prende o conhecimento a uma “expertise” preestabelecida, cujos fundamentos nunca são questionados, ou opor-se ao sistema cuja lógica é decidir o que deve ser conhecido. A decolonização do conhecimento segue uma lógica iconoclasta e irreverente que não coloca a deferência ao pensamento dominante legítimo como um princípio, mas se opõe a ele com uma reinvenção contínua das formas de pensar e se relacionar, e uma postura que imagina o mundo de forma “diferente”. A decolonização do conhecimento abre a porta para a prefiguração do que a administração poderia ser, em vez do que é forçada a se tornar nas e pelas escolas de negócio. Atualmente, vários projetos de pesquisa estão lidando com essa tarefa: aqueles que se referem às teorias queer para repensar o controle em relação às novas normatividades das categorias de gênero; aqueles que analisam as lutas subalternas para descentralizar o tema eurocêntrico da gestão; ou aqueles que repensam a casta como uma instituição hierárquica e questionam seu impacto sobre a concepção clássica de trabalho.

No Brasil, a tradição crítica em administração é bem estabelecida e foi, inclusive, uma das primeiras a se desenvolver [14]. A questão da raça e de seus efeitos foi abordada muito antes do que em qualquer outra área da gestão, especialmente graças ao trabalho pioneiro de Alberto Guerreiro-Ramos [15]. Hoje, muitos pesquisadores estão ajudando a desestabilizar os fundamentos epistemológicos eurocêntricos hegemônicos e estão desenvolvendo uma crítica da ordem estabelecida a partir das margens. Os trabalhos de Rafael Alcadipani et Amon Barros [16], Alexandre Faria [17], Ana Paula Paes de Paula [18], Maria Ceci Misoczky, [19] Carolina Machado Saraiva [20], entre outros, têm produzido incansavelmente esse discurso crítico, a partir de escolas de gestão brasileiras.

Portanto, a decolonização do conhecimento gerencial não pode vir das próprias instituições, mas deve ser feita organicamente a partir de suas margens, de seus locais de dissidência epistêmica. Deve-se observar que, nesse espírito crítico, as próprias margens devem ser questionadas e não podem, de forma alguma, ser fixadas geograficamente ou reivindicadas, pois são produzidas e reproduzidas por meio de uma posição de oposição a qualquer forma de dominação do conhecimento. Declarar que se está “à margem” é, assim, contraditório à definição de margens epistemológicas dissidentes que descrevi aqui. René Descartes, um dos mestres do pensamento filosófico ocidental e uma grande influência na sua epistemologia, nos convidou em seu Discurso sobre o Método (1637) a nos tornarmos “os mestres e possuidores da natureza”. Os resultados desastrosos dessa postura supremacista ocidental estão se revelando diante de nossos olhos todos os dias. Pelo contrário, sejamos os servos da natureza e os eternos aprendizes do mundo.

Referências

[1] CHAUDHURI, A. “O verdadeiro significado de Rhodes Must Fall”, The Guardian, 2016.

[2] SHAIN, F., YILDIZ, Ü. K., POKU, V e GOKAY, B. “From silence to ‘strategic advancement’: institutional responses to ‘decolonising’ in higher education in England”, Teaching in Higher Education Critical Perspectives, 2021, p. 920 a 936.

[3] HEADRICK, D. R. The Tools of Empire: Technology and European Imperialism in the Nineteenth Century, Oxford University Press, 1981.

[4] PULLEN, C. R.  A. “The good business school”, Organization – Volume 30, Issue 6, 2023.

[5] ABREU-PEDERZINI, G. D. e SUÁREZ-BARRAZA, M. F. “Just Let Us Be: Domination, the Postcolonial Condition, and the Global Field of Business Schools”, Academy of Management Learning & Education – Vol. 19, 2020.

[6] POOLE, S. “The Death of Homo Economicus review – why does capitalism still exist?”, The Guardian, 2017.

[7] IBARRA-COLADO, E. “Organization Studies and Epistemic Coloniality in Latin America: Thinking Otherness from the Margins”,  Worlds & Knowledges Otherwise, Center for Global Studies & The Humanities, Duke University,   2007.

[8] KELLEY, R. D. G. “What Did Cedric Robinson Mean by Racial Capitalism?”, Boston Review, 2017.

[9] SABINO, G. F. T. e PINHEIRO, D. C. “We need to talk about Taylor1: evidence of racism in scientific management?”, Cadernos EBAPE.BR, 2023.

[10] FEAGI, J. R. – “Whiteness as a Managerial System Race and the Control of U.S. Labor”,  Monthly Review, 2013.

[11] RAY, V. “A Theory of Racialized Organizations”, Journals of the American Sociological Association, Volume 84, Issue 1, 2019.

[12] SILVA, D. F. “‘Bahia Pêlo Negro’: Can the subaltern (subject of raciality) speak?”, Ethnicities – Volume 5, Issue 3, 2005.

[13] COOKE, B. “The Denial of Slavery in Management Studies”, Journal of Management Studies, 2003.

[14] MISOCZKY, M. C., FLORES, R. K. e GOULART, S. “An Anti-Management Statement In Dialogue With Critical Brazilian Authors”, RAE – Revista de Administração de Empresas, 2015.

[15] PAULA, A. P. P. “Guerreiro Ramos: resgatando o pensamento de um sociólogo crítico das organizações”, Organização e Sociedade, 2007.

[16] BARROS, A. e  ALCADIPANI, R. “Decolonizing journals in management and organizations? Epistemological colonial encounters and the double translation”, Volume 54, Issue 4, Management Learning, 2022.

[17] ABDALLA, M. M. e FARIA, A. “Em defesa da opção decolonial em administração/gestão”, Cadernos EBAPE.BR, 2017.

[18] PAULA, A. P. P., MARANHÃO, C. M. A., BARRETO, Raquel de Oliveira e  KLECHEN, C. F. “A tradição e a autonomia dos Estudos Organizacionais Críticos no Brasil”, RAE – Revista de Administração de Empresas, 2010.

[19] MISOCZKY, M. C. e BÖHM, S. “Resisting neocolonial development: Andalgalá’s people struggle against mega-mining projects”, Cadernos EBAPE.BR, 2013.

[20] SARAIVA, C. M. e FERREIRA, P. T. M., “The tragedy of Mariana in management’s tragedy”, Observatório C.a.f.é, 2019.

Chahrazad Abdallah

Professora da Universidade de Quebec em Montreal (Canadá)

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