Maria Sâmara Azevedo tornou-se uma especialista em prevenção e posvenção de violência escolar após realizar a cobertura jornalística de ataques a duas instituições de ensino. Em uma delas, no bairro de Realengo, no Rio, doze alunos foram mortos, em 2011. Na cidade de Taiúva, interior de São Paulo, o atirador feriu cinco colegas (um deles ficou paraplégico), dois funcionários e depois se suicidou, em 2003.
Sensibilizada pela dor de alunos, professores e pais, a jornalista mergulhou no universo escolar, publicou o livro “Violência na escola: o desafio de enfrentar o bullying e reconstruir a paz” e hoje dá palestras sobre o tema.
“Durante as entrevistas no Rio e em Taiúva, percebi que esses ataques poderiam ter sido evitados. Era sabido por todos que os autores eram vítimas de um bullying grave e persistente”, observa Azevedo. A seguir, a Sâmara relata essa e outras percepções advindas desse trabalho em campo, ouvindo professores, familiares e alunos das duas escolas.
Detalhes sobre as escolas e os envolvidos foram intencionalmente omitidos para desestimular atos por imitação
Parepense – Como foi a experiência de fazer a cobertura do ataque em Taiúva e do massacre de Realengo?
Maria Sâmara Azevedo – Realizei a cobertura bastante tempo depois do dia em que esses episódios aconteceram. Em Realengo foi após um ano e em Taiúva, depois de oito anos. Mas a sensação era de que tudo havia acabado de acontecer. As famílias ainda tinham muitas lágrimas para chorar. Elas não tiveram acesso à posvenção, que é um cuidado importante após um acontecimento violento. Feridas psíquicas e físicas ainda estavam abertas. As pessoas não receberam tratamento psicológico e ainda havia gente com bala alojada no corpo.
PP – O que chamou a sua atenção durante as entrevistas nas escolas?
MA – Percebi que esses ataques poderiam ser evitados. Em Realengo o autor era um ex-aluno, e em Taiúva, um aluno. Entrevistei os diretores das escolas e os relatos eram que esses rapazes já tinham denunciado à coordenação escolar as agressões que vinham sofrendo. Ambos sofreram bullying e não tinham um bom ambiente familiar. Tanto o atirador de Taiúva quanto o de Realengo passaram por sérios episódios de agressões dentro da escola, um por conta de seu peso corporal e o outro porque era tímido e testemunha de Jeová. Além disso, os dois cultuavam a figura de Hitler. Meu desafio na época e até hoje é o mesmo: explicar para as pessoas que esses atos de vingança não vêm do nada.
PP – Esses dois eventos do passado e os ataques de 2023 possuem similaridades?
MA – Esses ataques têm uma narrativa muito parecida. Os autores tinham histórico de severo sofrimento escolar e familiar. Depois de perder alguém que era importante em suas vidas, decidem fazer vítimas que não necessariamente praticaram o bullying contra eles, com o intuito de se tornar heróis. Também deixaram mensagens a respeito, por escrito, em vídeo, fotos. Apenas o deTaiúva foi um pouco diferente. O atirador se vingou das mesmas pessoas que fizeram bullying contra ele e não deixou mensagem. Vários dos autores também participavam intensamente de grupos de jogos online, onde podem ter se deparado com a apologia a discursos extremistas e atos violentos.
“Lamentavelmente muitos pais dizem aos filhos: ‘se você apanhou sem revidar, eu mesmo bato em você para aprender a se defender’ ”
PP – De que forma as famílias contribuem para esse cenário de violência?
MA – Já ouvi de muitos pais a seguinte ideia, transmitida aos filhos: “se você apanhou sem revidar, eu mesmo bato em você para aprender a se defender”. O que está por trás dessa frase é: “você não pode demonstrar fraqueza, você não pode aceitar que o outro esteja acima de você de alguma maneira”. Claro que é importante saber se defender, mas não pela agressão física. A cultura da paz precisa ser estimulada e ela envolve ensinar sobre as emoções. Saber ceder, saber recuar e entender que nem sempre ganhamos em um conflito é fundamental para ter um ambiente mais pacífico. Não se trata de ser submisso, mas de optarmos pela paz em vez de ter a agressão como principal solução para as divergências.
PP – O que você extraiu de lições dos ataques do Rio e Taiúva, e os de agora, em 2023?
MA – Desde que cobri os primeiros massacres entendi que precisamos aprender a trabalhar nossas emoções. Não estamos prontos para ter empatia com quem enfrenta problemas sérios em casa e na escola e é excluído socialmente, como foram os autores dos ataques. Eles não foram ensinados a lidar com a raiva e o medo por meio, por exemplo, da arte, de uma terapia ou mesmo sendo ouvidos por alguém de confiança. Muitas escolas não sabem lidar com o aluno que é rejeitado pelos demais e muitos estudantes não gostam de andar com quem é excluído da turma. Os professores gostam de alunos participativos. Mas precisamos dar voz aos mais calados. Um aluno perseguido e deixado à própria sorte, perde completamente o senso de pertencimento e adoece.
PP – O que destacaria como central na prevenção à violência escolar?
MA – A prevenção à violência escolar começa pela reflexão sobre esse fenômeno dentro da própria comunidade escolar. Falar, criar rodas de conversas, fazer peças de teatro é uma saída para abordarem um assunto tão complexo. Também é fundamental aprender a ouvir os alunos e não banalizar as denúncias de agressões. Um jovem que sofre bullying e é ouvido, apoiado e tem suas emoções validadas, poderá se refazer. Se a situação for varrida para baixo do tapete, o que é muito comum, pode sair do controle.
PP – Como avalia a compreensão que a sociedade tem do bullying?
MA – É muito limitada, muitos dizem até que o bullying não existe, ignorando a realidade e todo o conhecimento e as pesquisas sobre o tema. Penso que cuidar da rejeição dos alunos que são assediados é essencial para evitar o agravamento da situação no longo prazo. Mas não só. O bullying envolve uma plateia, que assiste a isso e acaba dando força para o agressor. Por isso a rejeição na escola precisa ser trabalhada com todos, no sentido de deixar crianças e jovens mais fortes para aceitar e respeitar as diferenças.
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