Search
Close this search box.
Em entrevista, Flávia Vivaldi, professora doutora em Educação pela Unicamp, fala sobre a desvalorização das instituições de ensino promovida por pais, discursos extremistas e políticas públicas frágeis
Imagem de Leandro Silva

Imersa profissionalmente em escolas desde os 14 anos (naquela época era possível ter carteira de trabalho assinada antes dos 18), Flávia Vivaldi, professora doutora em Educação pela Unicamp, percebia inúmeros sinais de que uma bomba relógio estava prestes a explodir nas escolas.

Mesmo assim, surpreendeu-se com a escalada da violência de agosto do ano passado até março deste ano, que considera sem igual nas suas décadas de vivência em instituições de ensino como funcionária, professora e pesquisadora – atualmente ela faz parte Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) da Unicamp e Unesp, e do Instituto de Estudos Avançados (Idea) da Unicamp.

A seguir, ela explica por que a escola se tornou alvo de ameaças e ataques mortais.

ParePense Como você se sentiu com os ataques às escolas, considerando a sua proximidade com esse universo?

Flávia Vivaldi – A naturalização do discurso de ódio, da violência doméstica e contra a mulher já indicavam um grave adoecimento social, com grande chance de repercussões nas escolas. De um lado temos essa violência e de outro, a visão míope de que escola não é espaço de diálogo, mas de vigilância e obediência. Assim, inúmeras dificuldades de professores e de alunos foram sendo caladas e ignoradas, dando margem para a intolerância e a radicalização. Doeu muito ver tudo o que aconteceu neste ano, havia sinais nesse sentido, mas não imaginava que fosse uma escalada tão intensa. Nos meus 45 anos de profissão, nunca vi tanto sofrimento na comunidade escolar como agora.

PPE qual é a sua leitura sobre essa escalada?

FV – No meu grupo de pesquisa, com trabalhos ainda em andamento, fizemos um recorte dos ataques cujos autores são alunos ou ex-alunos, então o caso de Blumenau não entra nessa análise. A primeira característica em comum é o ressentimento em relação à vida escolar, em função de bullying, ciúmes, entre outros aspectos. O segundo ponto é a sensação de ausência de pertencimento. Todo mundo precisa pertencer a algum grupo, no trabalho, na escola, na família. Na adolescência isso é vital, ter pares, ser aceito. Há também uma ligação desses autores com uma subcultura extremista. Muitos viveram ou vivem em violência doméstica e apresentam indícios de transtorno mental. Com tantas vulnerabilidades, eles acabam sendo cooptados por comunidades radicais, onde teorias da conspiração, misoginia e racismo estão muito presentes. Todo esse quadro favorece a violência, mas não explica tudo.

PPO que mais precisamos levar em conta para entender esse problema?

FV – A coletividade, o poder público. As políticas públicas de apoio psicossocial a adolescentes são muito frágeis. Neste momento, o Brasil inteiro quer contratar psicólogo e assistente social, sendo que essa ajuda vem sendo pedida há muitos anos sem sucesso. Há, agora, o risco destes profissionais tornarem a escola um espaço clínico, criando outro problema. Nosso foco não pode ser apenas o indivíduo. Temos que pensar nas questões coletivas. Não é um aluno que está doente, mas o ambiente escolar está adoecido.

“Se queremos uma sociedade mais ética, justa e solidária, temos que planejar uma escola voltada para esses valores”

PPQuais são essas questões coletivas?

FV – Vamos pensar no funcionamento da escola. Muitas possuem um ambiente altamente competitivo, com ranking, foco total no vestibular ou em uma alfabetização a toque de caixa. Há ainda o uso de medidas punitivas e a forte crença de que é necessário controlar os alunos, evitando discordâncias e opiniões. Acaba sendo um espaço de muita pressão.

Por outro lado, os professores são desvalorizados de várias formas, pelo Estado, alunos e pais. As famílias pensam que a escola é lugar apenas para aprender conteúdo. Mas como já existem inúmeras fontes de informação, como a internet, a escola perdeu o lugar de destaque de antigamente. Hoje, pais com recursos levam os filhos para viajar durante o semestre letivo, para fugir da alta temporada. Isso não acontecia no passado, porque a escola era percebida como uma fonte de autoridade e uma referência na sociedade, e as famílias só viajavam nas férias escolares. Faltar à aula por lazer era algo impensável. 

PPComo a escola pode recuperar a sua relevância?

FV – Estamos falando de uma mudança de paradigma que vai incidir a médio e longo prazo. A grande questão a pensar é: que sociedade queremos ter no futuro? Se queremos uma sociedade mais ética, justa e solidária temos que planejar uma escola voltada para esses valores. Não estamos falando de algo abstrato. É algo absolutamente possível, que inclusive já existe em teoria, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Na BNCC, uma das competências importantes é a argumentação. Para desenvolver argumentação, é necessário liberdade para falar, não vale investir apenas na linguagem escrita. E a escola deixa o aluno falar? Ouve o que ele fala? Como seria se ele pudesse dizer que a escola é chata e a escola pudesse lidar com isso? Há muita incoerência ainda entre teoria e prática nas salas de aula.

PPEstão faltando as tais competências socioemocionais?

FV: Meu trabalho é muito voltado para o desenvolvimento da autonomia moral. Nós temos que oferecer um ambiente propício ao exercício do diálogo e para a convivência com diferentes valores, culturas, crenças e religiões. Nós precisamos tirar a escola desse lugar de só olhar para o próprio umbigo e buscar um compromisso social. Precisamos apostar em competências sociomorais. São os valores sociomorais que mudam a vida no planeta — por meio deles olhamos para além do que pensamos e sentimos, e incluímos o outro. 

PP: Qual a sua opinião sobre a reação imediata das escolas de aumentar a segurança?

FV: Aumentar a segurança é importante, mas atende mais ao nosso pânico do que à raiz dos problemas. Esse momento tão triste e preocupante é também uma oportunidade para escutarmos mais os alunos e os professores, e repensarmos os atuais modelos de educação escolar. Se a proposta da escola for apenas aumentar muros, câmeras e vigias, estamos mal. Precisamos pensar na programação da convivência dentro da escola, tendo como base que sociedade que queremos para o futuro. A hora é essa.

Parepense

A revista eletrônica ParePense desafia a compreensão do nosso tempo através de um olhar diversificado que abrange desde a Filosofia até as Artes. Com reflexões profundas, críticas e sensíveis à realidade, buscamos promover uma visão de mundo plural, ética e responsável. Nossa linguagem é simples, mas nossos assuntos são complexos. Nossa equipe trabalha com autores de diversas partes do mundo para fornecer um conteúdo relevante, interessante e impactante.

Este espaço é dedicado a apresentar as instituições acadêmicas e empresas que apoiam a ParePense.

Ao apoiar a ParePense, nossos parceiros contribuem para dar visibilidade aos autores dos textos e para disseminar ideias e informações importantes sobre os desafios do mundo contemporâneo.

Para saber mais, entre em Contato.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Conteúdo Relacionado

Doutora em Educação pela USP e professora da Faculdade de Educação da UnB, Catarina Almeida explica, em entrevista, por que a padronização gera e agrava a agressão dentro das escolas
Em entrevista, a jornalista, escritora e neuroeducadora Maria Sâmara Azevedo relata a impactante experiência de cobrir os desdobramentos do massacre de Realengo, no Rio, e do ataque em Taiúva, interior de SP
“Violência e morte na escola”, por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Ataques às escolas alimentam-se principalmente da cultura narcisista, e não do poder próprio das redes sociais ou dos games

Inscreva-se na nossa newsletter

Atualizações sobre tudo o que há de novo na Parepense.