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Por que decisores deveriam ler para além dos clássicos?

Elisângela Furtado da Silva, professora da Fundação Dom Cabral (FDC) especialista em recursos humanos, e Maria Elisa Brandão, professora da FDC na área de Estratégia Empresarial, discorrem sobre os benefícios de mergulhar em livros que apresentam universos diferentes do que estamos habituados: eles ajudam a formar uma visão de mundo mais completa
Imagem de Gabriela Garcia

Repare:

  • Maria Elisa Brandão, editora convidada deste número da revista Parepense, apresenta brevemente os cincos artigos que abordam o tema Humanidades e Gestão;
  • em seguida, ela desenvolve seu próprio artigo com a professora Elisângela Furtado da Silva, iniciando pela ideia de que nosso repertório de conhecimento modela nossas ações e que nosso conhecimento é o resultado da combinação de diversas influências, incluídos os livros que lemos;
  • as autoras lembram que a literatura tem o poder de estimular a criatividade, aumentar a capacidade de concentração e memorização, desenvolver o encadeamento de ideias e resolução de problemas, ampliar a capacidade crítica e analítica, e melhorar a empatia;
  • para a ampliação de repertório e conhecimento, deveríamos ler livros que retratam mundos desconhecidos para nós e nos tirem da nossa zona de conforto. Ainda que representem uma ameaça à nossa comodidade, pelo enfrentamento do desconhecido, do hostil e do potencialmente desagradável, eles ampliam nosso repertório sobre o mundo;
  • a conclusão é que viajar por mundos desconhecidos através da literatura pode despertar sensações diferentes. Histórias distintas nos colocam em contato com estranhamentos, outras formas de nos comunicar e relacionar com pessoas;
  • de acordo com as autoras, a ampliação do repertório cultural e o desenvolvimento de empatia são formas de aumentarmos a capacidade de nos comunicarmos e de fazermos análises, levando a decisões com maiores chances de sucesso.

De que forma as Humanidades podem contribuir para tornar a gestão e os gestores mais criativos, inovadores e sensíveis às grandes questões do nosso tempo? Para responder a essa pergunta tão complexa e instigante, selecionei cinco artigos que navegam por diferentes áreas – literatura, psicologia, filosofia, entre outras –, tecendo reflexões e provocações sobre o mundo dos negócios, de escolas de administração a empresas.

Em “Tolstoi, Dostoievski e a vida corporativa”, o professor Diego Marconatto mostra como a arte pode nos salvar do vazio existencial gerado pelo trabalho e pela pressão da performance. Em parceria com a professora Elisângela Furtado da Silva, escrevi sobre a importância de decisores ampliarem o repertório (e a empatia) com narrativas literárias que venham de fora da bolha dos best-sellers – o texto está adiante.

Com “Uma tarefa para as escolas de negócios: decolonizar”, a professora Chahrazad Abdallah alerta sobre a urgência de a academia acolher o conhecimento que está à margem do olhar ocidental, reconhecendo a importância de outras epistemologias. Já o artigo da professora Ângela Salgueiro Marques, e da doutoranda Lara Dornas, “Metáforas de Walter Benjamin e o movimento Loucos por Bento”, ilustra bem, com o processo de reconstrução de uma comunidade destruída por uma tragédia ambiental, como os atingidos se apropriaram de sua própria narrativa.

Por fim, o professor Anderson Sant’Ana nos apresenta um novo perfil de líder em “O que Winnicott, Espinoza e Foucault ensinam sobre liderança”. Um bom gestor, segundo ele, se destaca menos pelos talentos individuais e mais pelo compromisso em oferecer um ambiente de trabalho emocionalmente seguro e saudável. A seguir, “Por que decisores deveriam ler para além dos clássicos?”

A literatura é reconhecidamente um portal capaz de nos fazer viajar por vidas e mundos totalmente diferentes de nossa realidade. Em alguns casos, a influência da literatura na vida da pessoa é tamanha, que a escolha pessoal e/ou profissional é motivada por alguma história lida na infância. Leitores jovens não encaram o caráter fictício, divergente ou até fantástico como impedimento para despertar interesse e empatia pelos personagens e suas trajetórias. Talvez, seja até possível considerar que quanto mais rico e improvável o enredo, mais atrativa a leitura para eles.

Nos perguntamos aqui porém, se, ao nos tornarmos leitores adultos, não acabamos por nos acomodar nos nossos quadros de referências tradicionais, abrindo mão dessa viagem pelos mundos desconhecidos que tanto nos encantam na infância… Será que, como leitores maduros, ao escolhermos nossos livros, autores e temas, não temos nos apegado a “mais do mesmo”, à nossa zona de conforto em vez de nos aventuramos por territórios desconhecidos e descortinarmos (no lugar seguro da literatura) horizontes inexplorados?

“Quanto mais amplo e diverso nosso quadro, maior será nossa possibilidade de tomar decisões assertivas”

A forma como enxergamos o mundo à nossa volta, o modo como nos relacionamos com as demais pessoas e os cenários que somos capazes de identificar para fundamentar a tomada de decisões no trabalho exigem que acionemos nosso repertório de conhecimento. Nosso conhecimento é o resultado da combinação entre os ensinamentos e valores familiares que recebemos, nossa educação formal, as ideias compartilhadas por amigos ao longo da vida e também dos livros que lemos. O repertório de referência é nosso quadro de referência.

Acionamos esse quadro de referência para tomarmos decisões. Quanto mais amplo e diverso nosso quadro, maior será nossa possibilidade de tomar decisões assertivas. Para ilustrar essa consequência, vamos recordar o argumento do texto clássico A República, de Platão.

Nessa alegoria, pessoas presas em uma caverna, confinadas desde a mais tenra idade, têm movimentos impedidos por correntes presas aos pés. O campo de visão se resume àquilo que era possível capturar por sombras projetadas no fundo da caverna. Todo o conhecimento que essas pessoas possuíam, estava circunscrito às impressões geradas pelas sombras na caverna. O quadro de referência que construíram, obviamente está distorcido em relação ao mundo real.

Compreendemos com essa alegoria a dimensão da ignorância daquelas pessoas. Contudo, se nos imaginarmos no lugar das pessoas acorrentadas, é possível perceber a dificuldade de reconhecermos a dimensão de nossa própria ignorância.

Quem sai da caverna tem a oportunidade de confrontar o que acreditava saber sobre o mundo, frente às novas informações adquiridas. Sob a liberdade e a luz do dia, a natureza, as demais pessoas e tudo o que parecia ser a realidade, se revela e pode ser conhecido em sua plenitude. No entanto, Platão também descreve a dor causada pela luz intensa em retinas acostumadas à penumbra. Nessas condições, a liberdade tem um preço. Para as pessoas confinadas, a caverna transita entre aprisionamento e segurança. Abandonar a caverna pode significar uma ameaça ao conforto, já que implica em enfrentar o desconhecido, eventualmente hostil e potencialmente desagradável mundo exterior, fora dos domínios do meu controle.

Na genialidade da metáfora de Platão, podemos pensar que todos nós temos nossas próprias cavernas. Tudo que buscamos conhecer é um movimento de abandono das sensações imprecisas, da técnica baseada na tentativa e erro e da ignorância. Quanto mais aprendemos, menos estamos sujeitos aos efeitos da ‘caverna e suas sombras’. No entanto, mais entregue ao desconforto nos colocamos.

Sempre que assumirmos uma determinada perspectiva como única referência, construímos novas “cavernas”. Assim, os conhecimentos adquiridos e os cenários familiares se tornam lugares reconfortantes, seguros e, em alguma medida, retratam uma versão única de mundo previsível. Esse é o percurso descrito por Adichie (2019), com sua discussão sobre o perigo da história única.

“Ao ler o relato literário, somos convidados a conhecer mundos alternativos ao nosso, com vocabulários, valores e vivências particulares”

De acordo com a autora, “a história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história” (Adichie, 2019, p. 14). Por meio de uma narrativa reveladora e objetiva, ela denuncia, por exemplo, o preconceito implicado na redução de todas as características do continente africano à miséria. A perspectiva fragmentada afeta nossa capacidade de racionalizar, de realizar análise e tomar decisões, como as distorções no julgamento. Aí reside a importância de analisarmos qual é nosso quadro de referência e quais são as possibilidades que ele oferece. E como podemos ampliá-lo.

O processo decisório e a literatura

No dia a dia todos nós tomamos decisões. Simon (1965) afirmou que o processo decisório pode ser considerado o coração da Administração. No entanto, nosso tempo, disponibilidade, engajamento e cognição para essa infinidade de decisões a que somos demandados, são finitos.

Poderíamos citar inúmeras características que diferenciam a tomada de decisão profissional das demais. Nas relações organizacionais, nos deparamos com problemas que precisam de solução. Na maior parte das vezes, a solução encontrada por nós advém do nosso repertório. Não precisamos pensar em um roteiro ou checklist para sair do dilema. O processo decisório envolve automaticamente acesso ao repertório sistematizado. Se você desempenha um papel em gestão, seu principal instrumento de trabalho é a tomada de decisão. Nosso repertório de conhecimento está diretamente ligado à qualidade das decisões que tomamos e ao aumento das chances de sucesso. Por isso, conhecer as possibilidades de aprimorar essas habilidades é primordial.

A compreensão de que a literatura é uma das possibilidades que temos para ampliar nosso conhecimento é bastante aceita. Assim, Adichie (2019) propõe o equilíbrio de histórias, que é o exercício compreendido pela busca constante de ampliação do repertório. Sair da caverna. A literatura não possui a pretensão de descrever a realidade dos fatos. Ela é uma construção gerada a partir da perspectiva de alguém e muitas vezes seu caráter ficcional é sua maior potencialidade.

A literatura alcança lugares que somente nos atrevemos a acessar por meio da memória. Isso foi observado por Pollak (1989), ao relatar situações paradoxais e não retratadas nos textos históricos mais conhecidos, como participação de judeus na administração nazista. Alguns fenômenos não poderiam ser conhecidos se não pudéssemos representar a realidade. Pense nas dificuldades em entender a inveja ou sabotagem em um ambiente corporativo. Como bem representam os autores ficcionais modernos…

Ao ler o relato literário, somos convidados a conhecer mundos alternativos ao nosso, com seus vocabulários, valores, dramas e vivências particulares. Tudo isso traz vantagens como:

  • estímulo à criatividade;
  • aumento da capacidade de concentração e memorização;
  • desenvolvimento do encadeamento de ideias e resolução de problemas;
  • ampliação da capacidade crítica e analítica;
  • mais empatia.

Hoje nem precisamos procurar tanto e já temos todo ano a lista dos livros indicados por Barack Obama, Bill Gates, Oprah Winfrey e outros líderes, que já transformaram em tradição divulgar suas recomendações de leitura. O interessante na lista dos líderes citados, é que sempre temos livros de ficção e não ficção. Ambos leem e recomendam livros sobre gestão, sobre questões globais, biografias e ficção (ou romances) que tratam da vida de pessoas comuns (como os da jovem romancista Lauren Groff, uma das preferidas de Obama).

Ampliar nosso repertório, sair da caverna, deve significar, como esses líderes exemplificam, buscar temas de outras realidades diferentes das nossas, outras histórias. Fugira da história única conhecida. Explorar autores e livros diferentes do nosso perfil. Conhecer vozes que só agora estão tendo chance de se expressar (sendo publicados, promovidos, vendidos). Referem-se a personagens que vivem em outros países e continentes dos quais conhecíamos pouco, mulheres, negros, asiáticos, pessoas escravizadas… Assim vamos além das listas dos “melhores livros de todos os tempos”, que também vinha sendo invariavelmente dominados por autores homens brancos, do ‘Norte Global”.

Para abrir realmente nossos repertórios e iluminar nossa tomada de decisão, precisamos entender melhor como se sente outra pessoa, diferente de nós. A literatura é capaz de nos fazer enxergar o mundo por uma lente de quem o experimenta de forma totalmente diferente da nossa e de compreendermos seu cotidiano e a forma como age. Ocorre que muitos dos textos capazes de promover essa mudança, são pouco conhecidos. Para Adichie (2019, p. 16), “as histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar”. A autora nigeriana procura chamar a atenção para o fato de que as histórias de pessoas comuns, muitas delas provenientes de camadas vulneráveis da sociedade, são importantes e capazes de contribuir em diversos aspectos para o nosso desenvolvimento. E para ampliar nosso repertório.

Histórias como as contadas por Conceição Evaristo (2018), em seu “Becos de Memória”. Nele, a autora lança cor às lembranças dos afetos e afetamentos vivenciados por moradores de uma favela condenada a demolição. Maria-Nova, uma menina com 13 anos, é quem assume o papel de compartilhar o cotidiano e a dor invisível de personagens como Vô Vicêncio, Bondade, Tio Totó e Di Lixão, personagens que vivenciam o drama de perderem seu lar, ante a iminente desocupação da favela na qual moram. Além da riqueza na descrição dos sentimentos de pessoas comuns, a obra carrega alto grau de sofisticação estética, já que é capaz de proporcionar ao leitor a sensação de experimentar o beco em três formas distintas. A primeira delas é a forma como Evaristo apresenta as histórias. A aparente sequência caótica formada por trechos curtos em muito se aproxima à experiência de uma pessoa que percorre um beco em uma favela. A outra é a forma como Evaristo apresenta ao leitor o beco na temporalidade: o que guia a progressão das histórias é o fluxo construído pelas memórias da autora. Por fim, há a representação do beco em sua forma mais imediata, um lugar do qual emergem histórias. Por diversas formas, Evaristo conduz seu leitor a compreender o beco, qual é seu significado e como é a vida de quem ali vive.

Maior capacidade comunicacional e analítica

Viajar por mundos desconhecidos é o movimento que pode nos despertar sensações diferentes. A sensação provocada por histórias semelhantes às nossas é reconfortante e nos traz a sensação de reconhecimento. É nesse cenário que o apego ao lugar seguro, confortável, se aproxima à caverna de Platão. A preferência pelo conhecido pode se tornar um hábito tão forte, que se torna um viés cognitivo na tomada de decisão. Ler clássicos celebrados do “cânone universal” pode ter esse efeito reconfortante.

Por outro lado, histórias distintas nos colocam em contato com estranhamentos, mas novos saberes, outras formas de se comunicar e de se conectar com pessoas. Além do desenvolvimento pessoal, os ganhos com experiências como essa, possuem reflexo direto com o processo decisório. A ampliação do repertório cultural e o desenvolvimento de empatia por grupos distintos aos nossos são formas de aumentar a capacidade de nos comunicarmos e de fazermos análises, fatores que contribuem para sermos capazes de tomar decisões com chance de sucesso. Vamos às novas leituras!

Referências

ADICHIE, C. N.  O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

EVARISTO, C. Becos de Memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.

POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Trad. FLAKSMAN, Dora Rocha. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

SIMON, H. O comportamento Administrativo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1965.

Elisângela Prado Furtado

Professora da Fundação Dom Cabral (FDC) especializada em recursos humanos

Maria Elisa Brandão

Professora da Fundação Dom Cabral (FDC), na área de Estratégia Empresarial

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