A cena de um aluno autista sendo covardemente agredido em uma escola do Rio de Janeiro por seus pares, nos lembra tristemente que a violência nas instituições de ensino nem sempre vem de fora. O bullying, em seus diferentes graus e expressões, é um fenômeno cada vez mais comum e grave.
Catarina de Almeida Santos, doutora em Educação pela USP e professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), vê nesse chocante episódio o resultado de uma sociedade que rejeita as diferenças e busca padronizar as pessoas. Por isso mesmo a docente, que também é uma das coordenadoras da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (REPME) e integrante do Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, ficou indignada com um programa do Mato Grosso do Sul que prevê cirurgia estética para adolescentes com o intuito de prevenir o bullying. Nessa entrevista, ela lembra que a escola é para formar, e não para conformar ou deformar os alunos.
Parepense – Por que o bullying se tornou um problema tão comum e, ao mesmo tempo, tão grave?
Catarina Almeida – O bullying é uma consequência natural de uma sociedade que estabeleceu padrões para o tipo de cabelo, cor da pele, peso ideal, forma do nariz, tamanho da orelha e por aí vai. Alguém que tenha alguma diferença em relação ao padrão, por exemplo usar óculos, corre o risco de ser assediado e excluído. O Brasil é um dos países mais diversos do mundo e na escola essas diferenças ficam explícitas. Em casa, todo mundo é igual, na escola, não. O ponto é que quanto mais defendemos e valorizamos a diversidade, maior é a reação contra ela. Quanto mais avançamos na afirmação e valorização das diferenças, mais esforços aparecem no sentido contrário. É o caso do bullying.
Pp – Qual é a sua opinião sobre um programa lançado no Mato Grosso do Sul que oferece cirurgias reparadoras a adolescentes, visando evitar que eles sofram bullying?
CA – É uma nova versão de eugenia. Essa proposta está afirmando que existe uma aparência correta e uma aparência errada, que deve ser corrigida e eliminada. Onde vamos parar com isso? Quem define o certo e o errado? Por essa lógica, corremos o risco de ter que adotar a mesma cor de pele, o mesmo tipo de orelha, de sobrancelha, de cabelo, de nariz, de peso, de sorriso. O bullying é fruto disso, de uma sociedade que vê a diferença entre as pessoas como um problema a ser resolvido.
Pp – Qual é o caminho para prevenir e combater o bullying?
CA – Uma escola precisa falar, pensar e lidar com as questões do mundo e não sofrer ataques de parlamentares e censura de pais por tratar de educação sexual, desigualdade social e racismo. Como vamos ensinar uma criança a denunciar um abuso ou prevenir uma gravidez precoce sem falar disso? Uma escola neutra é uma escola que não educa para as diferenças. Os alunos precisam aprender a dialogar, a pensar e a respeitar as diferenças. A escola é um espaço de formação, não de deformação ou conformação. Não adianta criar o dia antibullying ou um projeto especial e achar que isso é suficiente. A diversidade precisa ser trabalhada regularmente em textos, atividades, reuniões etc.
O fato de nomearmos o machismo e o racismo ajuda a combatê-los, mas também aumenta a reação de extremistas
Pp – Qual é a responsabilidade das redes sociais?
CA – As redes sociais potencializam o bullying. Quando um ataque viraliza, o autor pode ser considerado um herói, gerando um efeito de imitação. A vítima também é exposta em uma dimensão que não existia antigamente. A internet também é uma vitrine de padrões excludentes, que acabam prejudicando a autoestima, pois a imensa maioria das pessoas não se reconhece nas imagens e narrativas que circulam pela web. Por outro lado, as redes sociais podem ser utilizadas para discutir, prevenir e combater a violência escolar.
Pp – O bullying atual é diferente do que acontecia há décadas?
CA – Sim. Há as redes sociais, que ampliam o alcance dos problemas. E há o fato de que, hoje, estamos nomeando a violência e os preconceitos. Antes, o machismo e o racismo eram amplamente naturalizados, não se mexia nessas feridas. Agora, falamos em feminicídio, educação antirracista, misoginia, transfobia. Esse debate é muito importante para garantir a diversidade. E é claro que esse mesmo debate acirra a violência de extremistas de toda sorte e daqueles que não aceitam mudanças. Mesmo assim, temos que continuar defendendo e valorizando as diferenças, porque somos feitos delas. Elas deveriam ser motivo de orgulho e de exaltação. As escolas precisam ensinar isso no dia a dia.
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