Repare:
- a autora reflete sobre a evolução da leitura, que parte de um suporte imóvel e solitário, o livro, se transforma com o surgimento da fotografia e do cinema, e adquire uma faceta compartilhada, fragmentada e instantânea com o advento da internet;
- ela identifica quatro tipos de leitores, que se misturam e se modificam em consonância com o contexto histórico, sendo eles o contemplativo (livros), o movente (cinema e outras imagens), o imersivo (ciberespaço) e o ubíquo (hiperconectado);
- de acordo com a autora, apenas a leitura de livros promove a função reflexiva, possibilitando ao leitor a construção de um sentido singular e próprio para a obra lida;
- nos demais tipos de leitura, a velocidade, a quantidade, o imediatismo e a fragmentação do conteúdo exercitam outras habilidades, mas não a reflexão;
- por fim, a autora ressalta a importância do livro, em qualquer formato, para o desenvolvimento da capacidade de imaginação, compreensão e interpretação do mundo apoiada em uma visão holística e crítica.
Expandir o conceito de leitura
Impulsionada pelos estudos de multimídia, há algum tempo comecei a defender a ideia de que o ato de ler não poderia ser compreendido estritamente no campo da linguagem verbal escrita, ou seja, seguir letra após letra a linearidade sequencial de linhas ao longo de páginas (Santaella,1980). A rigor, a leitura do jornal já havia há muito demonstrado a limitação de tal conceito de leitura, pois a linguagem jornalística é, por natureza, diagramática, híbrida no aproveitamento que faz do espaço da página, na mistura de tamanho dos tipos gráficos e na combinação com a imagem. Naquela época, a poesia visual já havia feito história, a linguagem publicitária avançava em sofisticação, a cidade se povoava de sinais e luminosos, enfim, o ato de ler expandia-se visivelmente por outros espaços e suportes distintos do livro impresso. A reivindicação que aí se fazia dessa expansão, por razões que não vem ao caso colocar em pauta, adormeceu por exatas duas décadas para, então, reacender com força redobrada.
Entre o final dos anos 1990 e início de 2000, a internet dava seus primeiros passos no Brasil e, pouco a pouco, mas crescentemente, as telas cambiantes do computador começaram a ser acessadas pelos usuários que interagiam por meio de cliques navegáveis através de páginas mutáveis.
Entre 2002 e 2004, estávamos ainda aprendendo a navegar pelas infovias do ciberespaço. A curiosidade sobre o perfil perceptivo, motor, corporal e cognitivo dos usuários das redes impulsionou uma pesquisa empírica, logo depois publicada em livro (Santaella, 2004). Essa pesquisa conduziu à constatação de que se tratava de um novo modo de ler, um outro tipo de atividade, distinta da leitura do livro. Diante disso, o estudo teve início com uma tentativa de sistematizar os diferentes modos de ler, que são muitos, mas foram sintetizados em três modalidades que pareciam ter o poder de englobar as diferenças. Os tipos de leitor foram agrupados em contemplativo, movente e imersivo. Essa tipologia passou a despertar interesse, especialmente entre educadores. Dada a necessidade de rememorá-lo para continuar este artigo, segue uma breve explanação, entre outras já publicadas.
O leitor contemplativo
Esse é o leitor do texto impresso, cuja prática acompanhou a história do livro. Trata-se de uma prática de intimidade entre o leitor e o livro, caracterizada pela leitura silenciosa, individual e solitária. A leitura exige reclusão para a concentração mental, acompanhada pela capacidade de vivenciar situações e compartilhar pensamentos, tirando proveito dessa oportunidade ímpar de penetrar nos sentimentos e ideias de outra pessoa. Não por acaso, o lugar privilegiado para leitura é a biblioteca, ambiente propício para o desenvolvimento da capacidade de entrega cognitiva, imaginativa e interpretativa induzida pelo texto.
Esse tipo de leitor tem diante de si objetos e signos duráveis, imóveis, localizáveis, manuseáveis: livros, gravuras, mapas, partituras. É o mundo das letras, das linhas e dos traços cuja inscrição foi possibilitada pela porosidade e resistência do papel. Uma vez que estão localizados no espaço e duram no tempo, os livros podem ser revisitados e, enquanto objetos imóveis, é o leitor quem os procura, escolhe-os e delibera sobre o tempo que deve dispensar a eles.
Embora a leitura de um livro seja sequencial, a solidez do objeto-livro permite idas e vindas, retornos, ressignificações. Do século XVI ao XIX, livros, enciclopédias e dicionários imperaram como meios privilegiados e quase exclusivos de transmissão do conhecimento, da literatura, das belas letras e da cultura em geral. Graças a eles, as universidades europeias floresceram. Entretanto, sob efeito da Revolução Industrial e das novas máquinas de produção de linguagem que ela trouxe (a fotografia, o telégrafo e as rotatórias), essa soberania começou a sofrer concorrência do jornal, das revistas e da publicidade. A cultura livresca passou a conviver não só com esses meios híbridos, entre texto e imagem, mas também com a explosão das imagens em movimento no cinema. É nesse novo ambiente que nasceu aquilo a que foi dado o nome de leitor movente.
O leitor movente
O perfil cognitivo do leitor de jornal e do espectador de cinema distingue- se nitidamente do perfil do leitor contemplativo. Trata-se agora de um tipo de cognição cujo ritmo de percepção e atenção mudou de marcha, adaptado à aceleração e ao burburinho dos grandes centros urbanos. O que se tem aí é um novo tipo de leitor, treinado nas distrações fugazes e sensações evanescentes, cuja percepção se tornou uma atividade instável, de intensidades desiguais; leitor apressado da linguagem efêmera, híbrida, misturada que o jornal inaugurou, levando consigo um leitor fugaz, novidadeiro, de memória curta, mas ágil.
Além do jornal, o mundo moderno trouxe as publicidades de rua, que começaram a povoar a cidade com sinais e mensagens. Como orientar-se, como sobreviver na grande cidade sem as setas, os diagramas, os sinais, a avaliação imediata da velocidade do movimento e do burburinho urbano? O leitor de livro, meditativo, observador ancorado, sem urgências, provido de férteis faculdades imaginativas, passou a conviver com esse leitor movente, um leitor de formas, volumes, massas, interações de forças, movimentos; leitor de direções, traços, cores, de luzes que se acendem e se apagam.
Há isomorfia entre o modo como esse leitor se move na grande cidade, no movimento do trem, do bonde, dos ônibus e do carro, e o movimento das câmeras de cinema. De fato, a sensibilidade adaptada às intensidades fugidias da circulação incessante de estímulos efêmeros é inerentemente cinematográfica. A rapidez do ritmo cinematográfico e sua fragmentação audiovisual de alto impacto constituíram um paralelo aos choques e intensidades da vida moderna. Assim, enquanto a cultura do livro tende a desenvolver o pensamento lógico, analítico e sequencial, a exposição constante a conteúdos audiovisuais conduz ao pensamento associativo, intuitivo e sintético.
Um olhar retrospectivo nos revela que esse leitor movente foi preparando a sensibilidade perceptiva humana para o surgimento do leitor imersivo, que navega entre os nós e conexões alineares e reticulares dos espaços informacionais da internet.
O leitor imersivo
O adjetivo “imersivo” ajusta-se a esse tipo de leitor porque, no espaço informacional, ele se detém em telas e programas de leitura, num universo de signos evanescentes e eternamente disponíveis. Cognitivamente em estado de prontidão, esse leitor conecta-se entre nós e nexos, seguindo roteiros multilineares, multissequenciais e labirínticos que ele próprio ajuda a construir ao interagir com os nós entre textos, imagens, documentação, músicas, vídeo etc.
Nos anos que se seguiram à postulação do leitor imersivo como introdutor de um novo modo de ler, surgiram muitos estudos confirmando essa ideia. Nicholas Carr (2008) cita experimentos que demonstram que os leitores de ideogramas desenvolvem circuitos mentais distintos daqueles desenvolvidos pelos leitores de textos alfabéticos. As variações se estendem por várias regiões do cérebro, incluindo aquelas que governam funções cognitivas como a memória e a interpretação de estímulos visuais e auditivos. Disso se pode esperar que, quando navegamos no ciberespaço, são também acionados circuitos cerebrais diferentes daqueles que se desenvolvem quando lemos um livro.
De todo modo, é bom lembrar que os três tipos de leitor – contemplativo, movente e imersivo – não são excludentes, pois o surgimento de um não faz desaparecer o anterior. Não é difícil perceber que, sem nenhuma dúvida, esses tipos de leitor coexistem, complementam-se e se completam. Entretanto, nos últimos anos as transformações por que tem passado a cultura digital e a aceleração dessas transformações são de causar assombro. Tanto é que, nesse curto espaço de tempo, graças aos equipamentos móveis, portáteis que disponibilizam as redes informacionais na palma de nossas mãos, em qualquer lugar onde estejamos, surgiu um quarto tipo, batizado de leitor ubíquo.
O leitor ubíquo
Nos novos espaços da hipermobilidade hiperconectada emergiu o leitor ubíquo, com um perfil cognitivo inédito que nasce do cruzamento das características do leitor movente com as do imersivo. Os atributos que esse tipo de leitor apresenta foram devidamente explicitados em Santaella (2013). Trata-se de um leitor em estado de prontidão, equilibrando-se, sem tropeços, entre dois espaços: o físico, em que se locomove; e o informacional, pelo qual transita ao suave toque da ponta dos dedos.
É ubíquo porque está continuamente situado nas interfaces de duas presenças simultâneas, a física e a informacional, as quais reinventam o corpo, a arquitetura, o uso do espaço urbano e as relações complexas nas formas de habitar. Isso repercute nas esferas de trabalho, entretenimento, serviços, mercado, acesso e troca de informação, transmissão de conhecimento e de aprendizado.
Do leitor movente, o ubíquo herdou a capacidade de ler e transitar entre formas, volumes, massas, interações de forças, movimentos, direções, traços, cores, luzes que se acendem e se apagam, pistas, mapas… Enfim, o organismo desse leitor mudou de ritmo, sincronizando-se ao nomadismo próprio da aceleração e do burburinho do mundo por onde circulamos em carros, transportes coletivos e velozmente a pé.
Ao mesmo tempo que está corporalmente presente, perambulando pelos ambientes físicos – casa, trabalho, ruas, parques, avenidas, estradas – lendo os sinais e signos que esses ambientes emitem sem interrupção, o leitor movente, sem necessidade de mudar de marcha ou de lugar, é também imersivo.
Ao leve toque do seu dedo no celular, em quaisquer circunstâncias, ele pode penetrar no ciberespaço informacional, assim como conversar silenciosamente com alguém ou com um grupo de pessoas a vinte centímetros ou a continentes de distância. O que o caracteriza é uma prontidão cognitiva ímpar para orientar-se entre nós e nexos multimídia, sem perder o controle da sua presença e do seu entorno no espaço físico em que está situado (Santaella, 2013, pp. 265-284).
É preciso mais uma vez enfatizar que um tipo de leitor não substitui os outros. Como cada um deles desenvolve perfis cognitivos distintos, devem ser muito mais complementares do que excludentes. Isso significa, entre outras coisas, que o livro e o leitor contemplativo, que ele forma, continuam vivos e ativos.
A leitura contemplativa e os outros tipos de leitura
Entretanto, no ponto em que hoje nos encontramos, a revolução digital está cada vez mais onipresente, sobrecarregando nossa vida com as mais variadas próteses cognitivas. Todavia, nenhuma delas desempenha a função reflexiva que só a leitura do livro pode nos trazer. Quando dizemos livro, não necessariamente queremos significar o objeto em papel. O dispositivo para leitura pode ser outro, iPad, Kindle, não importa. Importa a maneira como a informação é formatada e disponibilizada para um ato de ler específico que exige o mergulho calmo e concentrado em conteúdos textuais que se desenrolam na continuidade do tempo. Um tipo de atividade que não pode se realizar sem o repouso silencioso do corpo. Um silêncio capaz de acionar a mente para a incorporação e memorização de um conteúdo que vai se construindo passo a passo, em teias de sentidos que crescem na sequência da entrega do leitor ao texto.
Em contraposição aos processos cognitivos próprios da leitura do livro, diante da avalanche de informação que nos chega pelos dispositivos conectados às redes, o já citado Carr publicou em 2008 um texto de grande impacto no qual defende que a internet está transformando o nosso cérebro para pior. Em 2010, publicou um livro manifesto, um best-seller que, sob o título de The shallow: What the internet is doing to our brains, o conduziu a finalista no prêmio Pulitzer, em 2011, ano em que o livro ganhou tradução para o português.
Para justificar seu julgamento, Carr (2008) recorre a uma série de pesquisas, as quais coroa com as considerações de Maryanne Wolf, autora do livro Proust and the squid: The story and science of the reading brain (2008). Para essa autora, segundo Carr, o estilo de leitura promovido pela internet coloca a eficiência e a imediaticidade acima de tudo, uma condição que pode estar enfraquecendo nossa capacidade de leitura profunda, aquela que emergiu com o livro. A autora é peremptória: “quando lemos on-line… tendemos a nos tornar ‘meros decodificadores’” 1 (citada por Carr, 2008, para. 9). Isso prejudica nossa capacidade de intelecção e interpretação, ou seja, deixa de desenvolver as habilidades mentais que a leitura profunda propicia.
As obras de Carr (2008, 2011) e de Wolf (2008) obtiveram grande repercussão. As ideias desta última ganharam continuidade em uma publicação recentemente traduzida para o português sob o título de O cérebro no mundo digital: Os desafios da leitura na nossa era (2019). Menos sensacionalista e mais ponderada do que Carr, Wolf, uma neurocientista cognitiva reconhecida, nesse último livro retoma sua preocupação com aquilo que chama de “cérebro leitor” na passagem que atravessamos de uma cultura baseada no letramento para uma cultura digital que difere radicalmente de todas as formas de comunicação anteriores. Suas interrogações são claras:
não poderia acontecer que a combinação da leitura em formatos digitais com a imersão diária em uma variedade de experiências digitais – desde as mídias sociais até os jogos virtuais – impeça a formação dos processos cognitivos mais demorados, como o pensamento crítico, a reflexão pessoal, a imaginação e a empatia que fazem parte da leitura profunda? . . . . Ou será que essas novas tecnologias oferecerão a melhor e mais completa ponte já criada para formas cada vez mais sofisticadas de conhecimento e imaginação, que habilitarão nossas crianças a saltar para novos mundos de conhecimento, que nós não conseguimos sequer imaginar neste momento? (p. 17)
No decorrer do livro, a autora evita soluções binárias, enfatizando sua decisão de trabalhar por um letramento global que envolve o uso de tablets, pois é de “primordial importância acompanhar os impactos crescentes das diferentes mídias” (Wolf, 2019, p. 21). Nessa mesma linha, a internet está povoada de relatos de pesquisas empíricas sobre as transformações cognitivas dos usuários do ciberespaço, todas elas trazendo conclusões confirmadoras de que um modo inédito de ler estava sendo inaugurado nas redes.
Ainda sobre o tema, Chafee (2014, p. 459) faz referência a uma pesquisa realizada durante cinco anos pela University College London, baseada na observação dos hábitos de frequentação dos usuários de dois websites populares. A pesquisa revelou que as pessoas que usavam os sites exibiam uma forma fragmentada de atividade, pulando de uma fonte para outra e raramente retornando a qualquer fonte que já haviam visitado. Normalmente não se lê mais do que uma ou duas páginas de um artigo ou livro antes de clicar para outro site. Por vezes, artigos mais longos são salvos, mas não há qualquer garantia de que serão lidos eventualmente. A conclusão de tudo isso é óbvia: ler on-line não é a mesma coisa que ler no sentido tradicional da palavra.
Krane (2006) relata uma pesquisa realizada pela Neag School of Education, na Universidade de Connecticut, a qual não só discutiu o que acontece com as pessoas quando elas não se engajam na leitura profunda, como também sugeriu as implicações de uma sociedade cujos indivíduos têm acesso a uma grande quantidade de informações pela internet, mas não dispõem das habilidades necessárias para analisá-las. Isso é certamente motivo de grande preocupação, pois qualquer pessoa pode publicar qualquer coisa na internet, e os usuários de hoje não estão preparados para avaliar criticamente a informação que encontram lá. O despreparo é intensificado porque as pessoas não têm o hábito de verificar as fontes e a precisão daquilo que leem on-line. Tanto mais preocupante é esse fato quando se consideram os jovens em formação.
Aquilo que vem sendo chamado de a nova economia da atenção (Santaella, 2010, pp. 311-322) refere-se aos efeitos que as modernas tecnologias informacionais estão provocando em nossos estados mentais. Uma corrente sem fim de chamadas telefônicas, muitas delas hoje feitas gratuitamente no Whatsapp, associadas aos e-mails, SMS, tweets, acompanhadas de atualizações dos amigos no Facebook, Instagram, tudo isso nos entremeios dos afazeres cotidianos, fazem parte de uma cultura institucionalizada de interrupções que dificulta a concentração e o pensamento criativo. Embora cada época seja desafiada pelas tecnologias que lhe são próprias, as tecnologias atuais estão nos programando para sermos continuamente interrompidos. Estímulos novos acionam nossa adrenalina, e nosso corpo assim nos recompensa por prestarmos atenção ao que é novo. Mas viver de maneira dominantemente reativa minimiza nossa capacidade de perseguir alvos.
Em entrevista realizada com uma executiva de 32 anos de uma corporação transnacional, como parte de um projeto de pesquisa, López-Ruiz (2018) relata a resposta da entrevistada: “Gostava de ler – ela disse – mas não tenho conseguido ir até o fim de nenhum livro” (p. 309). De fato, não apenas executivos, mas também pesquisadores e acadêmicos estão começando a sofrer do mesmo sintoma.
Entretanto, sem resvalarmos por catastrofismos, é preciso considerar que a ambivalência cada vez mais se revela como a grande caracterizadora da natureza do mundo digital. De um lado, o acúmulo de gadgets informativos nos oferece oportunidades extraordinárias, o potencial para a conexão e para aprender. Ao mesmo tempo, não faltam críticas ao fato de que eles minam nossos poderes de atenção. A imagem da pessoa bem-sucedida costuma ser a de um(a) frenético(a) multitarefas que nunca tem tempo e é constantemente interrompido(a). Contudo, não é difícil prever que, se continuarmos a nos esquecer de como usar nossos poderes de compenetração, ficaremos cada vez mais dependentes de pensamentos extremados, ideias superficiais e relações levianas, o que abre caminho para tiranias e mal-entendidos.
De outro lado, contudo, é preciso considerar a existência de um uso apropriado e eficaz daquilo que se busca nas redes. Esse uso requer habilidades por vezes ainda mais complexas do que aquelas mobilizadas na leitura de um livro. É o que foi concluído, por exemplo, na pesquisa realizada na Universidade de Connecticut (Leu et al., 2014). Essas habilidades envolvem a leitura dos resultados do mecanismo de busca, avaliando criticamente a veracidade da informação on-line; sintetizando informações de vários hiperlinks e comunicando-se claramente por e-mail ou Whatsapp, novas habilidades de leitura e escrita necessárias para os novos tempos.
Por essa e outras razões, não devemos cultivar preconceitos ou restrições ao estado atual dos leitores que, siderados, ciscam ininterruptamente nas redes, pulando de galho em galho entre fragmentos textuais e multimidiáticos. Entretanto, ao mesmo tempo é necessário reivindicar a manutenção, especialmente nos processos educacionais, do leitor contemplativo, ou seja, da concentração mental para o desenvolvimento de habilidades cognitivas que só a leitura do livro pode trazer.
Habilidades reflexivas propiciadas pela leitura do livro
Roger Chartier (2007) bate nessa mesma tecla ao considerar que, longe de uma guerra entre os distintos modos de ler, existe uma tendência para a complementaridade que, no caso da leitura do livro, deve ser incentivada por meio de estratégias educacionais atraentes e eficazes.
Além de auxiliar no aprendizado, a tecnologia faz circular textos de forma intensa, aberta e universal e, acredito, vai criar um novo tipo de obra literária ou histórica. Dispomos hoje de três formas de produção, transcrição e transmissão de texto: a mão, impressa e eletrônica – elas coexistem. (Chartier, 2007, para. 3)
Não se trata de uma coexistência por similaridade, mas sim por complementaridade. É preciso levar em conta que a leitura em rede “se dá de forma fragmentada, num mundo em que cada texto é pensado como uma unidade separada de informação”. O livro, ao contrário, “dá ao leitor a percepção de totalidade, coerência e identidade – o que não ocorre na tela” (Chartier, 2007, para. 18), pois o livro exige uma prática de leitura lenta e reflexiva. “E isso é diferente de pular de uma informação a outra, como fazemos ao ler notícias ou um site. Por isso, não tenho dúvida de que a cultura impressa continuará existindo” (Chartier, 2007, para. 20). A permanência da forma-livro se garante, antes de tudo, porque
o texto eletrônico priva o leitor dos critérios de julgamento de valor que existem no mundo impresso. Uma informação histórica publicada em um livro de uma editora respeitada tem mais chance de estar correta do que uma que saiu em uma revista ou em um site. (Chartier, 2007, para. 30)
Não se pode ignorar que há sites qualificados e livros desqualificados. Mas existe “um sistema de referências que hierarquiza as possibilidades de acerto no mundo impresso”. O mesmo procedimento não é encontrado no espaço digital.
“Isso permite que haja tantos plágios e informações falsas. Precisamos fornecer instrumentos críticos para controlar e corrigir informações na internet, evitando que a máquina seja um veículo de falsificação” (Chartier, 2007, para. 30). Parece bastante apropriado chamar de “contemplativo” o leitor de livro, pois esse perfil de leitor é, de fato, aquele que mais se adequa às habilidades desse atributo. Tal nomenclatura deve estar no caminho certo, uma vez que não são poucos os autores que têm recorrido a ela; é adotada por Wolf (2019), inclusive pelos autores que ela busca, como na citação a seguir:
Para ler, precisamos de um certo tipo de silêncio… que parece cada vez mais difícil encontrar em nossa sociedade, entregue em excesso às comunicações via rede… e onde aquilo que se deseja não é a contemplação, mas um estranho tipo de distração, uma distração que se disfarça como busca de informação. Nesse panorama, o conhecimento não tem como ser vítima da ilusão, ainda que seja uma ilusão profundamente sedutora, com sua promessa de que a velocidade pode levar-nos à iluminação, de que é mais importante reagir do que pensar a fundo. Ler é um ato de contemplação… um ato de resistência num panorama de distração. Nos faz voltar a ajustar as contas com o tempo. (Ulin citado por Wolf, 2019, p. 221)
“Contemplativo” é o termo também empregado por Beres (2017a), autor do livro Whole motion: Training your brain and body for optimal health (2017b), quando chama atenção para os benefícios mentais propiciados pela atividade contemplativa. Esse tipo de leitura, segundo o autor, ajuda no desenvolvimento da inteligência não apenas fluida, mas também emocional e intelectiva. Beres (2017a) cita uma pesquisa realizada na Universidade de Stanford sobre a diferença entre ler por prazer e leitura focada. O sangue flui no cérebro por áreas neurais distintas de acordo com a maneira como a leitura é conduzida. Isso significa que indiscutivelmente a leitura contemplativa, focada, compenetrada implica habilidades mentais específicas.
No belo ensaio sobre “Potência do pensamento: Por uma filosofia política da leitura”, Tiburi (2016) também chama a leitura do livro de “contemplativa”. Segundo ela, “o conceito de livro não implica apenas um tamanho. Podemos editar micro livros, macro livros, livros com textos, livro com imagens, mas o certo é que o livro é um objeto que pede contemplação” (para. 22). A autora continua:
Um livro é sempre um objeto de contemplação. A contemplação é o primeiro gesto reflexivo. Quando contemplo, eu posso pensar, isso quer dizer que me torno potente para pensar. Não foi escrito até hoje um livro que não tenha provocado ou não venha a provocar – por mais autoritário que ele possa ser ou parecer – a chance de pensar. Por isso, quando surge um livro que promove a estupidez ou o autoritarismo, ele sempre suscita a precariedade do seu próprio conteúdo, porque o ato de ler implica a atenção e a concentração – em uma palavra, a contemplação – que levam ao pensar no sentido da análise e da crítica. O livro é, independentemente de seu suporte, potência de pensamento. (para. 23)
É bastante curioso notar que Tiburi (2016) introduz também o termo “reflexivo” – o qual, aliás, antes de ter tomado conhecimento desse texto de Tiburi, foi utilizado em prefácio publicado no livro Comunicação digital na era da participação (Santaella, 2016), conforme segue:
Não parece haver parada para as alterações exponenciais da curva tecnológica: vidas sincronizadas entre os espaços físicos e as nuvens informacionais, internet das coisas, comunidades borgs, computadores afetivos, leitores de emoções, sensores por toda parte, ambientes e cidades sencientes, computação vestível, nanorobôs, é todo um conjunto inquietante e desconcertante de transmutações nas ecologias do existir que estão se avizinhando de nós. Diante disso, às próteses tecnológicas que vão sorrateiramente tomando conta cada vez mais intensamente das nossas vidas, urge que se somem próteses reflexivas, pensamentos que se debrucem e se demorem sobre esse complexíssimo estado de coisas, não só para descrevê-lo, mas, sobretudo, para pensá-lo, avaliá-lo, a fim de promover uma adaptação crítica e ética do ser humano às suas inéditas condições de existência. Ora, não há prótese reflexiva mais potente do que o livro. Cabeças pensantes que se entregam amorosamente à tarefa de compreender para que possamos melhor agir. (Santaella, 2016, p. 13)
A coincidência entre as propostas de ambos os textos é bastante evidente, especialmente quando Tiburi (2016) também se refere à função de prótese dos aparelhos em nossa vida, advogando que o livro “nos faz relacionarmo-nos com um tempo que nos escapa nos demais meios”, tornando-se nossa chance de “nos devolvermos a nós mesmos” (para. 27).
Explorando os filamentos das habilidades de leitura
Os especialistas em leitura costumam categorizar dois modos de ler: o intensivo e o extensivo. O primeiro tem por objeto textos curtos e, como a própria designação sugere, trata-se de uma leitura muito rente ao texto, cuidadosa e detalhista, atenta aos fatores microestruturais que garantem coesão, coerência e o efeito de unidade de um texto. Por sua vez, a leitura extensiva tem por objeto textos longos, implicando três graus de competência: compreensão, interpretação e diálogo. Por isso, podem ser chamados de “graus” de leitura as passagens crescentes em complexidade, as quais vão do compreender para o interpretar e deste para o diálogo crítico e criativo.
Marcuschi (2000) elencou as condições que operam na leitura dos diversos tipos de textos, fundamentais tanto na leitura intensiva quanto na extensiva; são elas: (a) base textual – pressupõe o compartilhamento do mesmo sistema linguístico entre texto e leitor; (b) conhecimentos relevantes partilhados – um passo mais complexo do que o mero domínio das regras linguísticas, pois uma base textual perde sua eficácia caso o leitor não partilhe os conhecimentos relevantes apresentados no texto; (c) coerência – construída não apenas na produção do texto, mas também no ato da leitura, pois mesmo um texto coerente pode ser lido de modo incoerente e o inverso também é verdadeiro; (d) cooperação – implica negociações bilaterais e colaborações mútuas entre texto e leitor, em situações concretas e reais; (e) abertura textual – o texto se abre em um leque de possibilidades interpretativas; (f) base contextual – quando o leque de sentidos se abre indefinidamente, entretanto, deve haver aí uma condição controladora dos excessos interpretativos, na medida em que contextos situados no tempo e espaço se façam presentes no texto e sejam cuidadosamente considerados pelo leitor; e (g) determinação tipológica – implica que cada tipo de texto apresenta restrições e aberturas próprias, por exemplo, pode-se perfeitamente fazer a imaginação voar em um texto ficcional, mas não se espera que uma argumentação seja infiel aos dados ou conceitos nos quais se baseia.
O que a descrição de cada uma dessas condições deixa claro é que elas não são isoladas, mas criam laços, dos quais se pode concluir que ler não se limita à simples apreensão de significados literais; compreender um texto não é memorizar e não se confunde com um jogo de adivinhações. Ler é manejar inferências, compreender implica perceber relevâncias e estabelecer diversas relações; ambiguidades, polissemias e vaguezas são altamente válidas em alguns tipos de texto e inválidas em outros.
A partir do exame dessas condições, válidas tanto para a leitura intensiva quanto para a extensiva, vale a pena especificar o que é próprio de cada uma dessas modalidades de leitura. Comecemos com a intensiva. A rede de relações que garante a coesão, a coerência e a unidade, ou seja, a perfeita articulação de um texto, apresenta três níveis, também entre si articulados, a saber: (a) da articulação dos elementos temáticos; (b) da integração entre as partes do texto (título, parágrafos, articuladores discursivos, organizadores metaenunciativos); e (c) das variações da estrutura ou superestrutura que determinam a ordem global do texto e que constituem as modalidades do discurso (descrição, narração, dissertação) (cf. Santaella, 2014, pp. 83-87).
Saber ler, portanto, é descobrir, por um caminho intransferível, os verdadeiros prazeres da leitura: as passagens que emocionam porque pinçam os nervos mais sensíveis da nossa sensibilidade ou nos perturbam porque expressam verdades das quais buscamos nos esconder; passagens que nos incomodam por provocarem nossa discórdia ou nos estimulam por acionarem a nossa anuência; em suma, passagens que nos desconcertam porque vão além da nossa compreensão, exigindo o esforço da aprendizagem transformadora (Santaella, 2014, p. 84).
Quanto à leitura extensiva, seus graus de complexidade crescem da compreensão para a interpretação e desta para o diálogo com o texto. A primeira etapa não significa meramente repetir o que o texto diz, mas sim dar a ele o respeito merecido, seguindo as pegadas, os rastros daquilo que ele quer dizer.
Como afirma Borges (1971), “ler ainda é uma atividade posterior à escrita: mais resignada, mais civil, mais intelectual”2 (p. 8). Isso não significa que a compreensão se confunde com simples captação de significados, mas se trata de interagir com o texto em um processo de produção de sentido que, em grande parte, depende da atividade do leitor.
Só se avança da compreensão para a interpretação quando se tem alguma segurança de que suficiente atenção foi dada ao primeiro nível, o da compreensão. Nas reflexões que desenvolveu sobre “a leitura na educação continuada”, Cintra (2008) sugere que a “escola básica vem trabalhando com as noções de compreensão e interpretação como quase sinônimas” (p. 41). Entretanto, na sua explanação, a autora discute a diferença entre essas duas competências, em uma linha muito similar à que está sendo aqui defendida. Só depois da compreensão “é que o leitor interpreta, ou seja, alarga os sentidos do texto” (p. 37). Assim, interpretação significa entrar em negociações bilaterais com o texto. Isso se evidencia na exploração da abertura que o texto oferece ou não para alternativas de compreensão. A passagem da interpretação para o diálogo crítico com o texto foi belamente expressa por Lajolo (1997):
Cada leitor, na individualidade de sua vida vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados que, ao longo da história de um texto, este foi acumulando. Cada leitor tem a história de suas leituras, cada texto, a história das suas. Leitor maduro é aquele que, em contato com o texto novo, faz convergir para o significado deste o significado de todos os textos que leu. E, conhecedor das interpretações que um texto já recebeu, é livre para aceitá-las ou recusá-las, e capaz de sobrepor a elas a interpretação que nasce de seu diálogo com o texto. Em resumo, o significado de um novo texto afasta, afeta e redimensiona o significado de todos os outros. (pp. 106-107)
Da compreensão para a interpretação e desta para o diálogo são etapas de maturação crescente que podem transformar leitores distraídos e dispersivos em “cisnes até mais tenebrosos e singulares que os bons autores”3 (Borges, 1971, p. 8). É o que, mais uma vez, afirmou Jorge Luis Borges, grande mestre dentre todos os mestres, com suas oferendas para a amorável atividade da leitura.
Referências
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Lucia Santaella
Pesquisadora do CNPq, professora na pós-graduação em Comunicação e Semiótica e em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUC-SP), doutora em Teoria Literária pela PUC-SP e livre-docente em Ciências da Comunicação pela USP