Repare:
- a autora inicia a reflexão pelo viés da perfeição estética e corporal, idealização que remonta ao período clássico da Grécia Antiga, quando o corpo perfeito foi definido em termos de harmonia e proporções;
- em seguida, é apresentada a diferença entre a perfeição que envolve a eterna superação de si mesmo e a perfeição que é pautada por padrões sociais e culturais já consagrados;
- é destacada a força nefasta de padrões que dividem as pessoas entre perfeitas e imperfeitas ou superiores e inferiores, como acontece em movimentos de extrema direita (nazismo, supremacia branca etc);
- a partir do conceito de narcisismo freudiano, a autora aponta que a ideia de ser perfeito traz a falsa sensação de controle da vida, que é, então, conduzida por padrões pré-estabelecidos e não pelo próprio desejo;
- por fim, a autora lembra que apegar-se à perfeição é renunciar à singularidade que cada um possui, em nome de evitar a responsabilidade de criar a própria história.
A busca da perfeição nos acompanha feito uma sombra, que se projeta no trabalho, em família, na academia, em festas. Queremos ser e parecer mais e melhor do que somos em várias esferas da vida. Mas, afinal, o que essa ambição quer dizer? Soberba? Insegurança? Necessidade de amor? Há muitas hipóteses legítimas, mas é certo que a meta de ser perfeito é tão tóxica quanto antiga. Comecemos pela vertente mais visível dela, a estética.
Já no século V a.C, os gregos criaram um ideal de beleza que, embora modificado ao longo tempo, tem sua essência preservada até hoje, impondo padrões nada realistas e saudáveis aos corpos.
Com o desenvolvimento das artes, da pintura e da escultura, o conceito de beleza vigente na Grécia – antes associado somente a valores como sabedoria, força e coragem – foi ampliado para o campo corporal e estético. Assim surgiu a ideia de um corpo perfeito, caracterizado por determinadas proporções e harmonia (do rosto, tórax, membros etc), definidas pela matemática (distância entre os olhos e cumprimento do nariz, por exemplo).
A perfeição tem pelo menos duas vertentes. Pode ser um desejo pautado por parâmetros individuais, com o objetivo de se superar (como bater a própria velocidade na corrida de rua). Ou pode dialogar com parâmetros coletivos (ter a boca da Angelina Jolie). Isto ocorre quando muitos acreditam que certo modelo de beleza, comportamento ou pensamento é o ideal. Daí surge um padrão, que passa a nortear a atitude e as crenças das pessoas.
“Há uma explosão de transtornos entre adolescentes, já que eles são mais suscetíveis à opinião alheia”
Alguns conseguem se aproximar do padrão supostamente perfeito (por esforço ou natureza) e outros sempre permanecerão distantes dele (por opção ou por ser inviável). Basta imaginar: como alguém que mede 1,90m poderá chegar a estatura menor?
É fácil deduzir o quanto a padronização já causou e causa estragos. Entre as mulheres e os homens, por exemplo, recai uma forte pressão, desde a infância, para que a aparência (peso, roupas, cabelo e outros aspectos) ajude a confirmar se a feminilidade ou a masculinidade corresponde ao padrão ouro. Não é por outro motivo que está em curso uma explosão de casos de depressão e ansiedade entre adolescentes, normalmente mais suscetíveis à opinião alheia. Os transtornos mentais na adolescência são atribuídos por especialistas à avalanche de imagens “perfeitas” que vem inundando essa fase da vida.
Também advém da padronização a tese de que existem grupos superiores e grupos inferiores, por conta da aparência, da origem ou da classe social. Ser diferente do padrão ideal é um problema. No caso do padrão estético, a cor da pele, dos olhos, tipo de cabelo e formato da boca já foram considerados critérios científicos para dividir as pessoas em superiores e inferiores. Essa visão foi e é colocada a serviço de brutalidades como o nazismo e a violência racial.
O conceito de perfeição não se restringe à aparência, é claro. Ele se apresenta em outras áreas como o trabalho, a saúde, a maternidade e o casamento. Em uma sociedade obstinada pela produtividade, “dar o sangue” é o lema de alguns profissionais, apesar dos prejuízos à saúde mental e física. Muitas sonham, consciente ou inconscientemente, em ser “mãe de Instagram”, sempre bela, ativa e sábia. Da mesma forma, bancar o parceiro infalível, que protege e provê mesmo exausto e infeliz, tornou-se a missão de outro tanto.
“Quem se atreve a ignorar o padrão tem que lidar com a própria singularidade”
Em todos esses casos, ocorre a negação da realidade (que é dura e feia) e prevalece a fantasia de que ter super poderes (malhar muito, trabalhar no fim de semana, seguir as receitas de influencers) conduzirá ao padrão “top” de profissional, de mãe, de pai, esposa, marido, de atleta etc. Quem se atreve a ignorar o padrão tem que lidar com sua singularidade (que nem sempre é bonita, correta ou simpática).
Em seu artigo sobre a história da superdotação e das altas habilidades no Brasil, Filipe Russo mostra como a ideia de perfeição gera preconceito e discriminação contra quem é diferente. Segundo o pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) e free lancer no Instituto Neurodiversidade e na Associação Multiétnica Wyka Kwar, o problema atinge até os gênios, que acabam sendo excluídos socialmente em escolas, universidades e no trabalho. Ele lembra da contribuição nefasta que a eugenia e as teorias da degeneração deram à humanidade. E observa que ambas “possuem em comum o postulado de que existe uma herança mórbida de caráter biológico que é transmitida intergeracionalmente, com expressões ou estigmas tanto físicos quanto morais”, dividindo o mundo entre perfeitos e imperfeitos.
A diversidade humana pode até não ser compreendida, mas é fundamental que ela seja respeitada. Mais do que nunca, empresas e instituições vêm reconhecendo a importância de atender necessidades específicas, oriundas de condições como autismo e TDAH. Profissionais autistas ou hiperativos podem ter ótimo desempenho, possuem talentos e agregam novos pontos de vista e experiências às equipes. Dougal Sutherland, psicólogo e professor da University Victoria de Wellington (Nova Zelândia), defende esse ponto e ensina como empregadores e empregados podem apoiar pessoas neurodivergentes no trabalho.
Note que o objetivo de ser perfeito relaciona-se a alguém ou algo que julgamos encarnar o padrão ideal (de beleza, sucesso, força, inteligência etc). Freud pôs o dedo nessa ferida com o conceito de narcisismo, que, na psicanálise, não tem a ver com exaltar a si mesmo, mas com amor-próprio e o amor por outras pessoas.
“Conforme amadurecemos, é preciso elaborar o ideal do Eu, ou seja, quem nós almejamos ser no mundo”
De acordo com o pensamento freudiano, quando bebês, somos narcisistas primários. Amamos somente a nós mesmos por uma questão de sobrevivência e porque enxergamos os pais como uma extensão nossa. Um bebê precisa receber muita atenção e cuidado para se desenvolver. Por isso é colocado no centro da família. Por algum tempo vivemos, então, sob a regência do Eu ideal, tendo a identidade largamente definida pelas expectativas dos pais em relação à prole.
Conforme crescemos e amadurecemos, é preciso elaborar o ideal do Eu, ou seja, quem nós almejamos ser no mundo, onde queremos chegar, como iremos amar e ser amados para além da família. Diz Freud sobre a construção do ideal do Eu, que é atormentada por um paradoxo1:
“O desenvolvimento do Eu consiste num distanciamento do narcisismo primário [aquele do bebê] e gera um intenso esforço para reconquistá-lo. Tal distanciamento ocorre através do deslocamento da libido para um ideal do Eu imposto de fora, e a satisfação, através do cumprimento desse ideal.”
Por um lado, queremos sair do ninho, obter independência e os prazeres decorrentes dela. Por outro, aterrorizados pelo medo de fazer escolhas e nos responsabilizarmos por elas, desejamos retornar à condição primeva de ser cuidado (como um bebê). Deste ângulo é possível enxergar a padronização como o bote salva-vidas no agitado oceano da singularidade. Diante do pavor de sermos nós mesmos, nos agarramos a padrões já consagrados socialmente e culturalmente, que nos guiam mundo afora, aliviando o peso de sermos nossa própria bússola.
As redes sociais têm protagonismo nessa história. As imagens e mensagens que ditam padrões ideais (de família, de desempenho no trabalho, de corpo etc) são espalhadas e metralhadas intensamente, a ponto de serem percebidas como verdade. Elas também fazem crer que atingir a perfeição é uma vitória sobre nossos problemas (de aparência, amor, poder etc), mesmo que o caminho seja de sofrimento e dor.
A respeito dessa solução errática, Freud comenta2:
“…aquilo que possui o mérito que falta ao Eu para torná-lo ideal [perfeito], é amado. Esse expediente tem particular importância para o neurótico, que devido a seus investimentos de objeto [amor dirigido aos outros] excessivos está empobrecido no Eu e incapaz de cumprir seu ideal do Eu.”
“O padrão ideal adoece porque é inatingível e cria um falso senso de segurança enquanto nos dedicamos a conquistá-lo”
Amamos intensamente o que nos falta. Esse amor intenso e direcionado a quem ou ao o que julgamos ser perfeitos onde não somos, enfraquece nossa capacidade de desejar fora do padrão e de realizar nossos desejos. Abandonamos o risco de sermos singulares e diferentes em nome de pertencer à manada.
O padrão ideal adoece. Tanto por ser inatingível quanto por criar um falso senso de segurança e de controle sobre a vida enquanto nos dedicamos a conquistá-lo. A queda na realidade, entretanto, acontece mais cedo ou mais tarde. Seja porque nunca chegaremos lá ou porque, ao chegarmos lá, um novo padrão ideal será erguido no horizonte.
São frequentes os casos de pessoas que realizam cirurgias estéticas para se sentirem melhor. Após a conquista do corpo desejado, porém, continuam insatisfeitas e se submetem a novos procedimentos. Sob a perspectiva psicanalítica, a insatisfação persistente não diz respeito ao corpo – este serve apenas de canal para comunicar uma questão de ordem psíquica, escondida no inconsciente. Por aí se vê quanto a aposta na perfeição é traiçoeira e nos desvia de uma existência mais livre e autêntica, construída com a própria assinatura.
Foi essa direção que tomou Rodrigo Hübner Mendes, educador e diretor do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), após sofrer um acidente que o deixou tetraplégico. Em vez de sucumbir às perdas – de mobilidade, de antigos sonhos, entre outras – ele reescreveu a própria história, inspirada pelas suas novas perspectivas e limitações. Mergulhou na educação inclusiva, tornou-se educador, fundou o IRM, alcançou projeção internacional. A experiência de mudar a rota tão radicalmente o levou a publicar o livro autobiográfico O potencial da mudança – O desafio de navegar pelas incertezas. Um trecho da obra e uma entrevista com o autor podem ser lidos nesta edição.
Também nadando contra a corrente, Kleber Wedemann elegeu a imperfeição como sua qualidade mais preciosa. Portador da doença dos “ossos de vidro”, que ocasiona inúmeras fraturas graves ao longo da vida, o executivo e advogado fez desta condição uma fonte de determinação, esforço, empatia, criatividade e outros atributos notáveis. Entre cirurgias, tratamentos e procedimentos médicos difíceis e recorrentes, Wedemann construiu uma carreira de sucesso, não apesar mas por causa dos limites impostos pela sua doença.
Abrir mão da idealização de uma vida perfeita é de suma importância e, por vezes, a única saída. Quem busca saber do próprio desejo e dos recursos para realizá-lo, faz um percurso mais verdadeiro e gratificante do que seguir a fantasia da perfeição.
Referências
- FREUD, Sigmund – Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e Outros Textos – Obras Completas Volume 12, p.48 – Companhia das Letras, 2010
- FREUD, Sigmund – Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e Outros Textos – Obras Completas Volume 12, p.49 – Companhia das Letras, 2010