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Ler obras literárias é muito mais do que um dever ou prazer. Esta atividade é comprovadamente eficaz para aumentar e preservar capacidades cognitivas e emocionais ao longo da vida, contribuindo para o aprendizado contínuo exigido pela Quarta Revolução Industrial
Imagem de Leandro Silva

Repare:

  • os autores associam o declínio do hábito de leitura de livros ao fato desta atividade exigir um esforço intelectual muito maior do o que temos praticado no dia a dia ao ler posts, sites, notícias e similares;
  • justamente por serem extensas e complexas, as obras literárias possuem relação direta com o aprimoramento e a manutenção das capacidades cognitivas em todas as faixas etárias;
  • pesquisas científicas comprovam que ler livros beneficia muito mais o raciocínio, a memória, o foco, a criatividade e a empatia do que outras expressões artísticas e culturais;
  • na contramão desse benefício está a realidade de crianças e de jovens com sérias dificuldades de leitura e de escrita, problema que foi agravado pela pandemia;
  • na Economia 4.0, milhões de empregos e de ocupações profissionais serão modificados ou eliminados em todo o mundo por conta da automação industrial, sobretudo os que envolvem atividades mais simples;
  • os autores enfatizam que incrementar os recursos intelectuais por meio da literatura é uma aposta certeira para desenvolver a atitude de eterno aprendiz que a economia 4.0 requer de todos nós.

Enquanto lê este parágrafo, o leitor/usuário/cliente pode pagar um boleto bancário, responder uma mensagem, dar um match, rejeitar uma chamada, comprar um tênis, curtir um post e… perder-se em uma miríade de tarefas e de distrações. Ao final destas poucas linhas, talvez não se lembre mais qual é o tema do artigo ou até já tenha pulado para outra ação em definitivo, deixando para depois (ou nunca mais) a conclusão da leitura iniciada e freneticamente interrompida por toda sorte de desejos e de demandas.

Tão corriqueira e prejudicial, essa experiência marcada pela fragmentação, dispersão e superficialidade vem sendo bastante estudada e debatida, não sem paixões, polêmicas e dúvidas sobre a medida certa das tecnologias digitais em nossas vidas. Entre as vantagens e desvantagens óbvias das telas esconde-se uma questão menos reluzente e alarmante, motivo desse texto: os impactos na nossa capacidade cognitiva da leitura de conteúdos variados e diários (sites, posts, notícias etc) versus a leitura de obras literárias, cada vez mais rara.

Livros têm tudo a ver com capacidade cognitiva, que tem tudo a ver com pensamento crítico, raciocínio lógico, concentração, foco, memória e criatividade. A inteligência é o que assegura minimamente um lugar ao sol na imprevisível e desafiadora Economia 4.0. Nesse momento, porém, a automação industrial e a integração de diferentes tecnologias avançam mais do que nossos esforços para acompanhá-las.

De acordo com um relatório do banco Goldman Sachs deste ano, a inteligência artificial (IA) deve afetar 300 milhões de empregos em todo o mundo. O estudo estima que cerca de 2/3 dos empregos atuais nos Estados Unidos e na Europa estão sujeitos a algum grau de automação, o que implica em mudanças nas funções profissionais, fechamento de vagas e até extinção de ocupações. Uma análise do Fórum Econômico Mundial prevê que até 2027 pelo menos 23% das profissões atuais sejam modificadas em decorrência da IA – com isso, 69 milhões de novos trabalhos seriam criados e 83 milhões, eliminados.

Os professores Denis Maracci Gimenez e Anselmo Luís dos Santos, ambos do Instituto de Economia da Unicamp, descrevem o futuro do mercado de trabalho a partir de várias fontes, entre elas uma pesquisa da consultoria McKinsey:

…inteligência artificial e robótica, afetarão 60% das ocupações no mundo, considerando que pelo  menos 30% das tarefas em cada atividade poderão ser  automatizadas até 2030. O impacto é maior em trabalhos técnicos e de média qualificação, nos quais cerca de metade de todas as tarefas  poderão ser automatizadas. A pesquisa considera que mesmo havendo trabalho suficiente para garantir o pleno emprego até 2030, grandes transições estão à frente, ultrapassando uma escala de mudanças históricas de transições anteriores que atingiram a agricultura e a manufatura. Os cenários construídos sugerem que, em 2030, entre 75 milhões e 375 milhões de trabalhadores (3% a 14% da força de trabalho global) precisarão mudar de categoria ocupacional. Além disso, todos os trabalhadores precisarão se adaptar, pois suas ocupações evoluem lado a lado com máquinas cada vez mais capazes. Algumas dessas adaptações exigirão maior nível educacional ou mais tempo em atividades que requerem habilidades emocionais, criatividade, capacidades cognitivas de alto nível e outras habilidades relativamente difíceis de automatizar.

Entre os países periféricos, o Brasil é um dos que mais deverá sentir a pressão da Economia 4.0 sobre os empregos, já que uma fatia considerável da força de trabalho está alocada em atividades pouco complexas, que podem ser substituídas por sistemas e máquinas com facilidade. Segundo o relatório dos professores da Unicamp, gargalos na indústria, na educação e na formação profissional tornam o país especialmente vulnerável aos saltos tecnológicos.

O fechamento massivo de vagas de trabalho e de ocupações profissionais é um temor palpável. Boa parte do planeta está impedida, pela desigualdade social, guerras e outras barreiras, de se preparar para a Quarta Revolução Industrial. Estar preparado é sinônimo de tornar-se um eterno aprendiz, apto a identificar e superar as próprias limitações a cada guinada da transformação digital. Adquirir recursos intelectuais e emocionais para manejar a inovação, bem como as mudanças econômicas, sociais e culturais que ela embute, será uma questão de sobrevivência pessoal e profissional.

Evidências científicas indicam que ler literatura de qualidade pode ser um caminho barato, simples e eficiente para encarar as turbulências de um mercado de trabalho sobre o qual temos mais perguntas do que respostas. Mas como aderir ao lifelong learning (aprendizado contínuo) se a conclusão de um único parágrafo tornou-se errática e sofrível até para adultos letrados? O que dizer de crianças e jovens nascidos sob a égide da dinâmica instantânea do TikTok ou do frenesi visual do Instagram? Como conseguirão saborear, ou pelo menos vencer, milhares de linhas escritas sobre um repetitivo fundo branco?

O panorama brasileiro é sombrio. Um relatório produzido em 2018 pelo Banco Mundial e apoiado em dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), aponta que os alunos brasileiros podem levar — pasme! — em torno de 260 anos para alcançar a proficiência em leitura dos países desenvolvidos. O estudo foi realizado antes da pandemia. Sobre o pós-pandemia no Brasil, a pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apresenta um quadro ainda mais dramático: entre 2019 e 2022, o percentual de crianças de 7 anos de idade que não sabem ler e escrever duplicou, passando de 20% para 40%. O atraso na alfabetização e no letramento gera evasão escolar, menores chances de entrar e ascender no mercado de trabalho, baixa produtividade, queda na autoestima, entre outros malefícios.

“Os livros transmitem e transformam o conhecimento da humanidade a cada geração, contribuindo para a sabedoria individual e coletiva”

Apostar na leitura como estratégia para enfrentar os novos tempos pode parecer ingênuo ou utópico, mas não é. Por muitos fatores, diminuímos a relevância dessa atividade, relegando-a a um prazer de férias ou a fundos falsos de tela em chamadas de vídeo. Os livros fazem parte dos alicerces da civilização. Eles transmitem e transformam o conhecimento da humanidade a cada geração, contribuindo para uma sabedoria que é tanto individual quanto coletiva. Da Odisseia (Homero) a Harry Potter (J. K. Rowling), passando por Dom Casmurro (Machado de Assis), a literatura mudou e moldou os rumos do mundo.

Infelizmente, as obras literárias entraram para a categoria de espécies exóticas e ameaçadas de risco de extinção (o fechamento das grandes livrarias é prova disso). Se não, responda: qual foi o último livro (vale digital) que você leu inteiro? E a pessoa mais próxima de você, costuma ler? Quantas livrarias e bibliotecas há perto da sua casa? Quando as visitou ou comprou um título pela internet?

Sejam quais forem as respostas, vale frisar que a capacidade cognitiva é estimulada e aprimorada especialmente pela leitura de obras escritas, mas nem tanto por outros tipos de conteúdo (jornais, filmes ou sites). A inteligência se expande notavelmente com os livros, e se retrai se não for devidamente exercitada, sobretudo na velhice. Uma atividade cerebral potente e saudável abre perspectivas de relacionamentos, de produtividade e de autonomia durante boa parte da nossa existência. O extremo oposto disso, a demência, limita e apaga nossa presença bem antes da morte.

Vamos aos fatos científicos. Nosso cérebro abriga três tipos de substâncias: a cinzenta (ligada ao aprendizado, raciocínio e memória), a negra (onde acontece a produção de dopamina) e a branca (faz a comunicação entre diferentes regiões cerebrais). A substância branca, pouco conhecida pela maioria e até por cientistas, tem uma função fundamental: promove a comunicação entre áreas da famosa substância (ou massa) cinzenta. Quanto melhor essa comunicação, mais afiado fica o nosso cérebro.

Um estudo realizado pelos cientistas Timothy Keller e Marcel Just, da Universidade Carnegie Mellon (EUA), revelou que o hábito da leitura incrementa a substância branca e, consequentemente, turbina as conexões realizadas entre as áreas da substância cinzenta. Os pesquisadores realizaram um estudo com crianças de 8 a 10 anos, que receberam um treinamento para ler mais. Após seis meses de treino, exames de imagem do cérebro mostraram não apenas um desempenho superior da substância branca, mas também mais facilidade para a leitura. Há um círculo virtuoso que leitores assíduos sentem a cada página virada: quanto mais lemos livros… mais lemos livros. Ler é mais complicado para quem raramente se aventura por obras escritas.

Devorar livros é como ingerir bons nutrientes para a nossa inteligência, que torna-se mais forte, ágil e longeva. Derek Beres, autor do livro Movimento completo: treinando seu cérebro e corpo para a saúde ideal, compara o hábito de ler ao de frequentar uma academia: ambos são cuidados essenciais para quem deseja viver bem e deveriam fazer parte da nossa rotina. Entretanto, a malhação dedicada ao cérebro ainda não alcançou a popularidade de ter músculos bem definidos e uma silhueta esguia.

“A literatura também eleva a empatia. Os títulos ficcionais são campeões nesse quesito”

E por que a leitura de livros tem esse efeito e outros tipos de leitura ou de experiências culturais e artísticas não? A sétima arte, por exemplo, não entrega os resultados cognitivos que uma obra literária, impressa ou digital, consegue entregar. Os livros, pelo formato e conteúdo, suscitam: 1) reflexão mais profunda; 2) total liberdade de imaginação; 3) a elaboração de um sentido próprio sobre a narrativa e 4) um fôlego intelectual elevado, se comparado ao esforço de assistir a um filme, no qual os recursos multimídia acabam facilitando e moldando nossa compreensão.

A professora e pesquisadora Lucia Santaella mostra no artigo “A leitura como prótese reflexiva” que as obras escritas proporcionam uma experiência contemplativa, solitária, longa, imóvel. É diferente do que acontece com a notícia lida no celular ou o filme assistido em uma telona, vivências aceleradas, imediatistas, móveis e compartilhadas. A análise da autora sobre as distinções entre os tipos de leitura apoia-se em pesquisas científicas de neurologistas e de psicólogos, que compararam a inteligência de leitores de livros com os daqueles que leem sites e notícias ou assistem vídeos. A reflexão dos leitores de livros é mais sofisticada.

Apesar disso, Santaella destaca que sites, vídeos e similares também oferecem ganhos cognitivos, como a prontidão e a flexibilidade para coordenar um grande volume de informações e ações nos ambientes físico e virtual. Na sua opinião, o uso combinado de vários tipos de leitura é uma opção interessante e realista, desde que tenhamos em mente o valor insubstituível de um livro, seja ele impresso ou digital.

Não bastasse o superpoder de nos fazer mais inteligentes, a literatura e os livros também elevam a empatia. Os títulos ficcionais são campeões nesse quesito, pois nos convidam a criar imagens, hipóteses e inferências sobre a narrativa. Imaginar como os personagens vivem, plasmando seus conflitos, anseios, vitórias e fracassos, movimenta um verdadeiro teatro mental. Nesse palco, assistimos e dirigimos a trama. A história de um protagonista deixa de ser somente do autor e conquista novos rumos e nuances pelos olhos do leitor. Por isso a literatura enriquece nosso repertório de emoções, de opiniões e de crenças, incentivando uma atitude empática.

A ideia de que os romances simulam perfeitamente a realidade foi estudada por Keith Oatley, psicólogo e professor da Universidade de Toronto (Canadá). Seu estudo mostrou que a simples leitura da descrição de um objeto ou de uma situação (como “maçã suculenta” ou “subiu uma montanha íngreme”) aciona no cérebro do leitor reações e mecanismos similares aos acionados no mundo físico. O mesmo ocorre quando lemos sobre o comportamento e a relação entre os personagens – auscultamos até as batidas do coração deles, refinando nosso entendimento sobre a alma humana e seus mistérios. Ganham com isso a capacidade de diálogo, de respeito, de cooperação, entre outros parentes próximos da empatia.

Não é por outro motivo que alguns países estão revendo a política de informatização das escolas, já que os dispositivos eletrônicos disputam e ganham de lavada a atenção que poderia ser dirigida a uma obra literária. A Suécia está nesse grupo. A educação 100% digital implantada nos anos 1990 nas instituições de ensino suecas vem sendo desativada. Em contrapartida, o governo está investindo pesado na compra e distribuição de livros impressos. O motivo? Pais e professores perceberam que os alunos passaram a aprender menos com o uso das novas tecnologias. Na Holanda, é lei: smartphones, tablets e relógios inteligentes serão proibidos em sala de aula a partir de 2024. Restrições similares também foram estipuladas pela França e Finlândia.

No âmbito doméstico, as escolhas e as possibilidades a respeito de livros e telas também importam e muito. Pais e filhos que leem livros juntos, visitam bibliotecas e participam de eventos literários desde os primeiros anos de vida da criança, favorecem a alfabetização, conforme explica a psicopedagoga Janair Cassiano, em entrevista à Parepense. A alfabetização é a base da formação de um leitor. Aprender a ler e a escrever com o apoio da leitura de livros – e não apenas com a associação entre sons e letras – é meio caminho andado para que o hábito da leitura apareça e cresça.

Se não há como antecipar os próximos capítulos da Economia 4.0 e muito menos cravar um final feliz para sempre, uma certeza já temos a essa altura. A literatura pode beneficiar incrivelmente de crianças a idosos, passando ainda por profissionais em atividade, de todas as áreas. Ler livros é também escrever uma história de vida mais interessante e compatível com a crescente complexidade do mundo contemporâneo.

Abel Reis

Abel Reis é editor-chefe da ParePense, autor do livro “Sociedade.com: Como as tecnologias digitais afetam quem somos e como vivemos” e pesquisador na Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Gabriela Garcia

Gabriela Garcia é editora da Parepense, jornalista e psicanalista.

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Respostas de 2

  1. Há algum tempo, o aspecto que tem mais me chamado a atenção é o do desenvolvimento da empatia. As pessoas parecem estar perdendo a capacidade de se pôr no lugar dos outros. Isso vem aumentando a intolerância e dificultando a convivência. A literatura é, como afirma o texto, uma grande aliada na melhora da qualidade das relações interpessoais. Grato pelo texto.

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