A reportagem “É preciso diminuir a desigualdade no Brasil para que a educação possa melhorar” foi publicada originalmente no Jornal da USP, em 05 de junho de 2023
Repare:
- em uma avaliação da Universidade de Boston sobre a capacidade de alunos do 4o ano do ensino fundamental em leitura e compreensão de textos, o Brasil aparece à frente apenas do Irã, Jordânia, Egito e África do Sul;
- o professor de Pietri observa que tanto o Brasil quanto a África do Sul se equiparam na desigualdade social advinda da colonização por países europeus e na violência racial instaurada pela escravidão e apartheid;
- o docente ressalta que a combinação de redução de investimentos na educação desde 2016 e a pandemia são outros indicativos de como a desigualdade prejudica o desempenho escolar, e não o contrário;
- durante o confinamento, alunos que não tiveram acesso adequado à tecnologia, viram o rendimento declinar mais do que aqueles que contaram com equipamentos e internet;
- na visão do professor, melhorar a educação requer, antes de mais nada, a redução da desigualdade social.
A avaliação Progress in International Reading Literacy Study (Pirls), realizada pela Universidade de Boston, fez o ranqueamento de 57 países com relação à capacidade dos alunos do 4º ano do ensino fundamental (9 a 10 anos) na leitura e compreensão de textos. As provas foram feitas em 2021 e mostram parte da influência da pandemia nesse âmbito.
O Brasil aparece à frente apenas do Irã, Jordânia, Egito e África do Sul, mas atrás de muitos países desenvolvidos. “A posição do País não surpreende, porque a gente já conhece dados anteriores que mostram que o Brasil ocupa essas posições quando participa de avaliações em larga escala, globais, comparativas como essa”, comenta o professor Emerson de Pietri, do Laboratório de Leitura e Expressão Criadora da Faculdade de Educação da USP.
“Em geral, causa indignação ele ocupar uma posição como essa porque parte do princípio de que ele é a décima segunda maior economia do mundo. Mas se a gente considera o nível de desigualdade do País, ele também está entre os mais desiguais do mundo. Olhando para o ranking de desigualdade dos países que participam do G20, os dois mais desiguais são: a África do Sul, em primeiro lugar, e o Brasil, em segundo”, analisa Pietri. Ele ainda acrescenta que, conforme os dados, a África do Sul ocupa o último lugar no ranking e o Brasil está apenas cinco posições acima.
Contexto histórico
Para observar por que o Brasil ocupa tal posição, comparando-o também com a África do Sul, o professor coloca que é preciso analisar a trajetória histórica: “Se a gente observar historicamente, são países que foram colônias de países europeus e os dois países tiveram processos de exploração racial extensos: o Brasil teve séculos de escravidão e a África do Sul, ao longo do século 20, teve o Apartheid. Essa desigualdade resulta de um processo de exploração econômica e de violências raciais”.
Pietri cita os dados da pesquisa The World Inequality Report 2022, no qual os 10% mais ricos do Brasil detêm quase 60% da renda nacional, que ajudam a entender também os resultados do Pirls: Cinco por cento dos estudantes que fizeram a prova estão no patamar mais alto do nível socioeconômico, muito bem escalonados na avaliação; 31%, no patamar intermediário; 64% estão abaixo da pontuação mínima e eles têm um nível socioeconômico baixo. Esse é um resultado que mostra que o problema da leitura no Brasil resulta da desigualdade econômica”.
Pandemia
Além da questão socioeconômica, o contexto mundial da pandemia, em que o levantamento foi realizado, influencia nos resultados do ranqueamento: “Agravou muito a possibilidade de acesso à escola e também outros fatores como a segurança física e alimentar das crianças, que eram fornecidos pelo ambiente escolar. Isso dificultou muito o seu processo formativo”, diz Pietri.
“Desde 2016, quando houve o golpe contra a presidente, os grupos que assumiram o controle do governo fizeram várias políticas que visaram a reduzir os investimentos em educação”
Sobre a aplicação do Pirls, o professor comenta que foi em formato digital e, com toda a dificuldade, sobretudo das escolas públicas, que compõem grande parte do sistema educacional, em se adaptarem a esse modo, pode ter ocorrido alguma defasagem: “Nessa versão de 2021, pela primeira vez, foi feito em modelo digital. Temos que considerar que as escolas no Brasil trabalham, principalmente, com o modelo presencial. Nós vimos, durante a pandemia, a dificuldade que foi para as escolas públicas se adequarem ao modelo on-line. Por isso, pode ter causado algum problema de compreensão no momento da leitura do texto e produzido diferenças nos modos como os estudantes fizeram a avaliação”.
Deficiências
O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) reconheceu as deficiências e a classificação baixa do Brasil nesse levantamento. Pietri complementa: “Desde 2016, quando houve o golpe contra a presidente, os grupos que assumiram o controle do governo fizeram várias políticas que visaram a reduzir os investimentos em educação. Tivemos, nesses últimos quatro anos, políticas funestas contra a educação, uma política de destruição. Tudo isso atinge diretamente a escola”.
O professor ainda coloca que essa avaliação pode ser um meio de avaliar a situação brasileira de forma mais objetiva, devido ao seu formato: “Essa avaliação possibilita pensar em alternativas para o Brasil. Ela tem uma característica um pouco diferente de outras avaliações amplas, já que é feita por amostragem e tem um controle de variáveis um pouco mais preciso. Para essa avaliação, se considera não apenas o resultado que os estudantes tiveram na prova, mas as correlações a outros dados obtidos, como os socioeconômicos, sobre materiais de leitura. Com esse controle melhor das variáveis, parece que há a possibilidade de observar os resultados de maneira mais precisa em relação à realidade do País”.
Soluções
O lugar ocupado pelo Brasil no ranking é baixo e Pietri ressalta uma das principais causas disso: a desigualdade. “É um resultado que mostra que o problema da leitura no Brasil é efetivamente um problema resultante da desigualdade social e econômica. Então, uma avaliação como essa pode auxiliar a considerar que é preciso diminuir a desigualdade no Brasil de modo que a educação possa melhorar. Isso ajuda a inverter um pensamento, que é considerar que a desigualdade é resultante da educação, mas, na verdade, é o contrário. Assim, a educação, às vezes, não oferece os resultados desejados justamente pelas condições de desigualdade, que não permitem que ela se desenvolva adequadamente”.
Ele crê que a evolução não vai ser rápida, vistos todo o histórico de políticas contrárias e o descaso com a educação brasileira, porém, é possível a longo prazo: “Vai exigir um tempo de reconstrução. Enquanto nós não retomarmos para o interesse público a educação no Brasil, nós continuaremos reféns dessa produção de desigualdade”.