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Ataques às escolas alimentam-se principalmente da cultura narcisista, e não do poder próprio das redes sociais ou dos games
Imagem de Leandro Silva

Repare:

  • é importante monitorar as redes sociais, mas responsabilizar especialmente as telas pela violência é negar a cultura narcísica que as envolve, na qual a imagem comanda a vida real das pessoas;
  • são problemas do mundo contemporâneo como a falta de empatia, exclusão social e ideologias extremistas que movem atos violentos, e não as redes sociais ou os games;
  • as telas tornam-se o melhor esteio de adolescentes e das crises típicas da idade quando a família e a escola falham em ampará-los. Nessa falha mora o perigo;
  • policiar escolas e redes sociais não deveria ser a principal ou única estratégia de enfrentamento de questões que advém de valores e relações adoecidas.

Enquanto ouvem tiros de fuzil nas caixas de som e veem personagens sendo assassinados nas telas de seus rebentos, é claro que os pais se perguntam até que ponto a ficção molda a realidade. Os games estimulam a agressividade, acalmam ou nenhuma das opções anteriores? Não temos ainda essa resposta. Neste momento, porém, a violência escolar não vem sendo primariamente associada aos jogos on-line, e sim às redes sociais e ao seu poder de propagação e de engajamento de pessoas em atos de ódio.

Em outra direção, especialistas também relacionam Instagram, TikTok e afins a impactos negativos na saúde mental, com prejuízos à auto-estima, sociabilidade, humor e sono de jovens. Moderar o uso de telas na adolescência se tornou o pesadelo de genitores cujos filhos confinam-se nos quartos enquanto o sol brilha lá fora.

Jogar a culpa nas telas, entretanto, não vale. Elas são apenas uma janela para o contexto em que vivemos. Estamos imersos até o pescoço em uma cultura narcisista na qual a importância de ver e ser visto, de parecer e aparecer, fez pacto de sangue com as plataformas digitais. Uma está unida à outra como nós estamos unidos aos dispositivos móveis, aguardando o próximo like ou comentário que nos enalteça. Ou deprima.

O olhar do outro nos define e nós definimos o outro pelo que vemos dele. A admiração e a validação têm norteado nossos movimentos na vida muito mais do que deveriam, deixando-nos à deriva da opinião alheia, que cancela e lacra ao calor da hora. É a ditadura da imagem, impiedosa, excludente e superficial. Sentir-se invisível ou mal visto é, quase, deixar de existir.

Os autores de massacres encontram na internet a esperança e o amparo para feridas não tratadas pela família e escola

De acordo com a psicanálise, as neuroses narcísicas surgiram nos anos 1950, trazendo um desafio novo para os divãs. Se antes os psicanalistas ouviam queixas atreladas a sintomas evidentes (uma dor no corpo, por exemplo), eles passaram a observar uma dificuldade de o paciente nomear o próprio sofrimento, somada a um forte senso de inadequação e de falta de sentido à vida. A melancolia, definida por sinais como auto-depreciação, pessimismo e a indiferença ao outro, seria assim uma expressão da neurose narcísica.

Como não associar esse quadro ao perfil de autores de massacres em escolas? Eles encontram na internet a esperança e o amparo para feridas abertas pelo bullying e outras agressões. São os “amigos” virtuais que oferecem a solução que a família e a escola falham em prover. Os discursos extremistas, tão enfáticos e hábeis em jogar a culpa nos outros, são música para ouvidos fragilizados e situados à margem social e cultural.

É claro que os transtornos mentais podem ser disparados ou ampliados pelo digital. O cyberbullying é prova disso e tem consequências gravíssimas como a violência escolar, a automutilação e o suicídio. Antigamente, era possível proteger-se em casa ou mudar de escola. Hoje, o assédio vive na nuvem, perseguindo-nos continuamente.

Contudo, a responsabilidade pela atual explosão de violência nas escolas precisa ser entendida em sua complexidade. Abarca os autores da ofensa, seus pais, a instituição de ensino. E também a todos nós, integrantes de uma sociedade inebriada pela aparência (de sucesso, de saúde, de vitória, de poder), que ignora a substância dos desejos, das angùstias e dos impasses humanos. Ao evitarmos nossas profundezas, contribuímos para que elas venham à superfície brutalmente, com toda a força do tempo em que foram negligenciadas e submetidas a imagens idealizadas de ser e viver que por sua vez contrastam escandalosamente com a realidade de uma sociedade desigual como a brasileira.

Crises fazem parte da vida, especialmente na adolescência. O que não deveria fazer parte é uma crise ser acolhida pela internet, e convenientemente ignorada por familiares, amigos, professores e colegas. As tecnologias digitais são tóxicas na medida do poder que damos a elas. Se a influência de games e redes sociais pesa mais do que relações e experiências concretas, é porque a realidade (e não o mundo virtual) tornou-se o problema.

Abel Reis

Abel Reis é editor-chefe da ParePense, autor do livro “Sociedade.com: Como as tecnologias digitais afetam quem somos e como vivemos” e pesquisador na Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Gabriela Garcia

Gabriela Garcia é editora da Parepense, jornalista e psicanalista.

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